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É possível conciliar a presunção de inocência com a tutela judicial efetiva?

O ponto central do debate reside na interpretação que se dá ao inciso LVII do art. 5º da CF, com a seguinte redação "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Atualizado em 19 de abril de 2018 08:13

As discussões que se iniciaram no Supremo Tribunal Federal a partir da impetração de um habeas corpus pela defesa do ex-presidente Lula trouxeram à tona um debate antigo em matéria penal, relacionado à possibilidade de cumprimento provisório da pena com a condenação em segundo grau de jurisdição.

O ponto central do debate reside na interpretação que se dá ao inciso LVII do art. 5º da CF, com a seguinte redação "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Tal dispositivo é apontado pela doutrina como depósito do princípio da presunção de inocência, o qual exigiria o esgotamento de todos os recursos previstos na legislação processual para o início do cumprimento da pena.

O ponto de divergência entre os ministros do STF na matéria é entender a extensão que se deve dar ao referido princípio, percebendo se o mesmo poderia aceitar alguma modificação em seu âmbito de incidência quando confrontado com outros princípios constitucionais, como o da tutela judicial efetiva.

A interpretação constitucional é uma técnica do constitucionalismo contemporâneo e serve para fornecer a devida compatibilidade entre o texto constitucional e a realidade da vida em sociedade, que sabemos ser dinâmica e evolutiva. Some-se a isso, a impossibilidade do legislador, mesmo em textos extensos, disciplinar a vida social e política em todos os seus aspectos.

Entretanto, a atividade do intérprete não pode nunca ser entendida enquanto exercício de um poder discricionário, pois uma das marcas evidentes do constitucionalismo reside na vinculação de todos, poder público e particulares, em relação aos comandos constitucionais.

Essa é uma ideia que se consolida na segunda metade do Séc. XX, em oposição ao pensamento predominante no século anterior de que os textos constitucionais seriam meras declarações de direitos, dependentes de textos legislativos infraconstitucionais para serem efetivados.

A dúvida atual parece ser em relação aos limites que estariam impostos a atividade do intérprete, pois o texto constitucional tem, entre outras funções, a capacidade de representar uma séria limitação ao exercício do poder político por aqueles que exercem a autoridade no Estado.

Dessa maneira, no exercício de suas competências, o intérprete não pode visualizar no caso constitucional questões puramente políticas (political questions), as quais não fazem parte da decisão jurídica em controle de constitucionalidade.

Some-se a isso a garantia de estabilidade do texto constitucional manifesta através de limitações ao poder de revisão constitucional. A norma constitucional foi desenhada para figurar no topo da arquitetura do sistema jurídico e nesse sentido não pode equivaler a uma norma ordinária. Para que isso ocorra, ela não deve ser modificada com a mesma facilidade com que se modifica uma lei infraconstitucional.

A técnica adotada pelo texto constitucional de 1988 foi o da rigidez constitucional, assim, por força do §4º do art. 60, as normas de direitos fundamentais tem nosso sistema jurídico o caráter de imodificáveis ou petrificadas, para utilizar a linguagem usual da doutrina jurídica nacional.

Por tudo isso, verifica-se que a atividade do intérprete em relação ao dispositivo que voltará a análise no Supremo em controle concentrado de constitucionalidade (Ações Declaratórias de Constitucionalidade números 43 e 44, de outubro de 2016, que aguardam ser julgadas no mérito) está muito limitada pela própria eloquência constitucional, ao exigir, no caso de prisão decorrente de condenação "o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Dessas expressões a que mais chama a atenção seria a necessidade de "trânsito em julgado". Tal conceito não é matéria de profundas divergências na área jurídica e denota uma situação em que a relação processual se encerra pelo esgotamento de recursos ou pelo transcurso de prazo sem a oposição de alguma impugnação. Em verdade, com o trânsito em julgado a relação processual se estabiliza e se encontra disponível para o início de uma fase executiva.

Em nossa opinião não é possível modificar tal conceito, atribuindo-lhe sentido diverso, por mais criativo e bem intencionado que seja o intérprete constitucional. Pior ainda seria ignorar a sua existência, tornando letra morta expressões existentes no texto constitucional.

Observa-se que nos votos dos ministros que se posicionaram a favor da flexibilização da regra, em consonância com entendimento já firmado em 2016, motivos extrajurídicos foram ventilados, como a impunidade, a necessidade de se combater a corrupção, o baixo índice de reforma das decisões em recursos para os Tribunais Superiores.

É claro que todos esses motivos são por demais relevantes, porém alheios à técnica de aplicação do direito. Tais motivos constituem "questões políticas" que devem ser debatidas em seu lugar adequado, qual seja o Congresso Nacional, sob pena de ofensa a separação de poderes, princípio estruturante da ordem jurídica.

Observando a precariedade da decisão tomada pelo Supremo em um plenário dividido, alguns congressistas se movimentam no sentido de propor uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para permitir o cumprimento provisório da pena após decisão em segunda instância, sob o argumento de que ante o entendimento já esposado pelo STF, uma alteração no texto constitucional no sentido de aclarar a matéria não poderia ser rotulada de inconstitucional.

Entretanto, em nossa humilde opinião, tal intento é viciado em sua gênese, por constituir a matéria, como dito anteriormente, sujeita à petrificação. Por outro lado, reconhecemos que uma resposta política deve ser dada para viabilizar a autuação dos órgãos de investigação e atacar a situação de impunidade que permeia a sociedade brasileira.

Em uma análise sistêmica do texto constitucional e das legislações relacionadas à matéria nos parece possível propor uma solução menos gravosa e mais eficiente, capaz de reduzir a discussão constitucional e atender as demandas políticas por mais efetividade no cumprimento das decisões judiciais.

A mesma regra constitucional que veda o início do cumprimento da pena, enquanto não consumado o trânsito em julgado, não inibe que sejam utilizadas outras formas de prisão, todas de natureza processual.

Nesse sentido, é permitida por decisão judicial a decretação de prisão processual (preventiva) por ordem fundamentada da autoridade. Alguns poderiam argumentar que a reforma do CPP ocorrida em 2008 já decidiu por extinguir tipos de prisão remanescentes de sistemas processuais anteriores, as quais já não eram aplicadas por força de decisões dos Tribunais Superiores, sob o argumento que tais medidas condicionavam, para o manuseio de recursos, o início do cumprimento da pena, em ofensa ao princípio da ampla defesa e do contraditório1.

Em nossa opinião, a proposta que aqui se defende não se confunde com o debate já travado anteriormente, mas sugere a incorporação de novos requisitos legais para a decretação da prisão preventiva, como a condenação em segunda instância, tratando-se de crimes hediondos ou de graves crimes contra a Administração Pública.

Nesse sentido, acreditamos que uma alteração na legislação processual para criar uma nova espécie de prisão preventiva, voltada para crimes hediondos e contra a administração pública, poderia ser o meio eficaz para apaziguar o forte debate constitucional que se trava em relação a extensão do princípio da presunção de inocência.

Na sistemática que imaginamos a conveniência da prisão preventiva deveria ser obrigatoriamente discutida pelo Tribunal no momento de proferir a decisão que confirme a sentença de mérito. Assim, por expressa determinação legal, ante a ocorrência de tais delitos, a legislação faria pressupor a existência de uma grave ameaça capaz de suscitar o debate.

Por outro lado, a aplicação do dispositivo poderia ser relativizada em dois momentos, pelo próprio Tribunal ao decidir sobre a conveniência da aplicação da medida ou pelo relator nos Tribunais Superiores na ocasião do julgamento dos recursos especial e extraordinário.

A mudança legislativa poderia suscitar debates nos Tribunais Superiores, a exemplo do que já ocorre em decisões que defendem que a hediondez de um crime, por si só, não é motivo suficiente para manter alguém preso2.

De fato, acreditamos que dentro da atual sistemática essa interpretação é correta, pois dentre os requisitos legais não constam expressamente a gravidade do delito para fundamentar isoladamente a decretação da preventiva.

A regra que defendemos colocaria maior ênfase no princípio da tutela judicial efetiva, relativizando nesse aspecto a ampla defesa e o contraditório. A nosso entender, este fundamento constitucional, está suficientemente protegido em seu núcleo essencial, por toda a ritualística que envolve a tramitação da ação penal nas duas instâncias.

A conveniência do debate acerca da preventiva estaria fortalecido por uma decisão de mérito, que passou pelo crivo do duplo grau de jurisdição, podendo o legislador acrescer um requisito objetivo para a decretação da preventiva, como o fez na redação do art. 313 do CPP.

O fortalecimento da prisão preventiva e a aceitação em nossa cultura jurídica de que após a decisão de mérito se torne regra, parece-nos um caminho menos gravoso para a concretização do ideal de tutela judicial efetiva.

Por outro lado, a implementação de tal mudança poderia representar um menor uso deste instituto em primeiro grau. Sabe-se que grande parte da população carcerária brasileira é constituída por presos provisórios com ações que tramitam em primeiro grau de jurisdição.

A prisão preventiva com o acréscimo do requisito de decisão de mérito, testada em duplo grau de jurisdição, poderia ser na verdade um fortalecimento da ampla defesa e do contraditório ao evitar o abuso na utilização do instituto em primeiro grau.

Por tudo isso, defendemos que não nos parece possível superar a redação expressa do texto constitucional que exige o trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena. Não obstante, dentre daquilo que nos permite a sistemática constitucional, uma rediscussão sobre a preventiva é possível, tratando-se de seus requisitos e do momento adequado para a sua decretação, a fim de conciliar os princípios constitucionais do melhor interesse dos direitos fundamentais do acusado e o legítimo interesse da sociedade em contar com instrumentos de combate à criminalidade mais efetivos.

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1 A prisão decorrente de pronúncia no procedimento do júri e a prisão em razão de sentença condenatória de 1ª Instância - em que o recolhimento à prisão era obrigatório para quem quisesse exercer o direito de apelar da sentença.

2 HC 143.065/RJ, Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 018, DIVULG 31/1/2018, PUBLIC 1º/2/2018.

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*Ítalo Melo de Farias é doutorando do programa "Administración, hacienda y justicia en el Estado Social" da Universidade de Salamanca. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, advogado e professor.

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