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A seleção e a torcida brasileira, Eudes Quintino

A seleção e a torcida brasileira

É difícil acreditar que o povo brasileiro pudesse dar uma guinada tão rápida e fazer dos acontecimentos políticos a sua conversa do dia a dia, retirando a pauta esportiva da área e mandando para escanteio o veterano esporte bretão.

domingo, 17 de junho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 14:19

 

Nelson Rodrigues, dentre outros predicados literários, imortal cronista esportivo, não entoaria hoje seus escritos com a mesma poesia e elegância de seu tempo. No país do futebol, assim batizado por ele, já não tão fanático após a vexatória derrota para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014, muitas bolas rolaram nas quatro linhas, obrigando o torcedor a uma releitura a respeito do esporte que sempre contou com a preferência popular. Já não dá mais crédito ilimitado à sua seleção e não a considera tão favorita como antes, além de amargar os tristes jogos dos times brasileiros, celeiros em que não se garimpam mais craques para o escrete canarinho, pois os melhores competem pelas agremiações do exterior.

O país, desta forma, distancia-se da Copa do Mundo e mantém os olhos atentos nos problemas nacionais, envolvendo política, economia, educação, segurança, saúde e outras plataformas carentes de uma administração mais condizente com a vontade do povo brasileiro. Sem falar, é claro, das eleições que se aproximam e se apresentam como fator primordial deste ano para o povo escolher um candidato que não carregue sequela de envolvimento em lava-jato ou outros malfeitos e que reúna as condições de exercer um mandato que promova a redenção do país.

É difícil acreditar que o povo brasileiro pudesse dar uma guinada tão rápida e fazer dos acontecimentos políticos a sua conversa do dia a dia, retirando a pauta esportiva da área e mandando para escanteio o veterano esporte bretão. As pautas discutidas no Planalto Central com os representantes dos movimentos dos caminhoneiros, por exemplo, são acompanhadas pari passu, como se fossem uma partida decisiva de um campeonato e com imediata repercussão nas redes sociais e noticiários.

Isto porque o que está sendo discutido em Brasília é assunto de interesse nacional, afetando diretamente a vida de cada cidadão, independentemente do credo político assumido. Tal fato, por si só, chamou a atenção do povo, que se vê como um agente participativo da negociação, legitimado a se manifestar a respeito, deixando transparecer seu ponto de vista, quer seja nas ruas, por meio das passeatas, quer seja nas redes sociais ou até mesmo no relacionamento cotidiano.

Assim é que, no encontro fortuito com amigos, seja no trabalho, no compromisso social, no comércio, o assunto surge de forma espontânea, como se fosse parte do cumprimento e vai possibilitando um diálogo com trocas de opiniões, muitas delas abalizadas, envolvendo até mesmo pessoas que se encontram ao largo, no banco de reservas, aguardando a vez para mostrar suas qualidades de exímio debatedor do assunto. Ninguém se preocupa se as opiniões são externadas no campo daquele que tem o mando ou do adversário. O importante é que sejam evitados o jogo violento, a falta considerada grave e o desrespeito ao contendor, passíveis do cartão vermelho.

E é interessante observar que as conversas não se limitam às ruas e já invadiram as reuniões familiares acarretando acaloradas discussões, como aquelas travadas quando o assunto era futebol, e muitas vezes deixam sequelas no relacionamento, com rompimento de laços afetivos de muitos anos.

O noticiário televisivo, por incrível que pareça, mais esperado que a partida de futebol, estendeu seu tempo e apresenta diariamente os novos lances dos acontecimentos, ouvindo-se juristas que desenvolvem suas teses e antíteses, os políticos que se perfilam de forma organizada para colocar em prática a estratégia dos ataques e contra-ataques, em busca de um tento decisivo. O cientista político, com um linguajar mais qualificado e técnico, sem se deixar inflamar pelas centelhas partidárias, ocupa posição de destaque, substituindo com galhardia o comentarista esportivo.

A Constituição Federal nunca foi tão falada e manuseada como agora. Alguns artigos brotaram em terreno fértil e já respingam nas bocas populares querendo decifrar o que é jurídico e o que é político. Os nomes dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal são escalados com certa intimidade, mais até que os jogadores da Seleção, assim como suas decisões vão sendo comentadas amiúde, dando a impressão que a argumentação jurídica tomou conta da pátria de chuteiras.

Com toda esta movimentação, o que é de importância salutar, as instituições permanecem inabaláveis, exercendo soberanamente seus poderes, garantindo um convívio civilizado nas arenas frequentadas pelas facções antagônicas, apontando um sinal positivo de maturidade cívica. Mas não se pode olvidar que já foram apontados alguns casos de intolerância política que podem provocar reações inesperadas e até mesmo com graves consequências.

Já dizia um filósofo esportivo que todo brasileiro é um técnico de futebol. Agora tem oportunidade para demonstrar seu preparo político e, para tanto, deverá escalar os nomes que integrarão seu time, assim como a estratégia de vencer o adversário. De goleada, se possível.

E a seleção? Sem crise, a sonhar com a vitória nas belas noites de Moscou.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp.

 

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