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O que aconteceu com o contrato? I

Ocorreram mudanças substanciais no contrato que, de simples, tornou-se muito complicado. Uma das mais importantes se deu no campo do direito do consumidor, no qual a igualdade ideal das partes cedeu lugar para o reconhecimento da figura inefável do consumidor, um ser hipossuficiente, considerado o ponto de vista jurídico, claro.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 16:30

Por que essa pergunta? Aconteceu mesmo alguma coisa com o contrato?

De início, destacamos que estamos no campo do Direito Comercial (ou empresarial, como queiram). Nada temos a ver aqui com o direito trabalhista, por exemplo.

"Ai vareia", como diria o caipira diante daquela pergunta. E a resposta pode ser variada e aparentemente contraditória.

Como instituto jurídico parece que não aconteceu nada com o contrato. Ele continua sendo todo acordo de vontades entre duas ou mais partes para o fim de constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial. Esta definição serve tanto para o contrato bilateral ou fechado como também para o contrato plurilateral ou aberto. A patrimonialidade da relação é elemento fundamental. Sem uma expressão em dinheiro, objeto das prestações das partes, não se trata de contrato. Mesmo uma doação é contrato porque o bem doado é suscetível de uma avaliação em dinheiro.

Mas ocorreram mudanças substanciais no contrato que, de simples, tornou-se muito complicado. Uma das mais importantes se deu no campo do direito do consumidor, no qual a igualdade ideal das partes cedeu lugar para o reconhecimento da figura inefável do consumidor, um ser hipossuficiente, considerado o ponto de vista jurídico, claro. Isto porque como um gastador do dinheiro que não tem ele se revela insuperável. Empresário de um lado, consumidor do outro, entendeu o legislador não sem razão que para reequilibrar os pratos da balança da Justiça era preciso botar um pouco mais de responsabilidade jurídica no prato do empresário para que os dois pratos da balança ficassem parelhos.

Acontece que cozinheiros consumeristas trataram de botar tanto molho e tempero no prato do consumidor que este ficou muito pesado para o empresário, tendo-o inclinado tanto que chegou a bater no piso da mesa dos negócios, onde a balança se situava. Um desses temperos foi chamado de Diálogo das Fontes, como se o direito do consumidor pudesse ser visto como uma fonte luminosa das antigas praças das cidades do interior, nas quais os jatos de água subiam e desciam em cadência alternada, cada uma com uma cor diferente, ao som de música bombástica. Ao final da apresentação, todos os jatos convergiam cheios de cores em uma apoteose brilhante. Fácil de inventar, difícil de aceitar essa noção. Afinal de contas, o direito apresenta uma estrutura militar, desde o general lá em cima até o soldado raso cá em baixo, ou seja, Constituição no topo e regulamento na base. O General manda e o soldado obedece.

Mas foi o Código Civil de 2002 o pai de alterações radicais no contrato, tendo ele levado ao cemitério jurídico por morte matada o nosso antigo Código de 2016 e o Código Comercial de 1850 (do qual sobrou somente o zumbi do Direito Marítimo), tendo deixado saudades, jamais podendo ser consolados os seus admiradores por mais que missas sejam celebradas.

E, como já tem sido dito muitas vezes, o contrato sofreu um ataque muito forte que atingiu seu âmago quando se mexeu na autonomia privada para condicioná-la a parâmetros idiossincráticos, que estão no artigo 421 do Código Civil, vinculados a tal da sua função social.

Veja-se que a autonomia privada (presente na expressão liberdade de contratar) ficou vinculada na razão e nos limites da função social do contrato. E aí nós, pobres destinatários dessas vinculações, na qualidade de operadores do direito, precisaremos decifrar o que elas querem significar.

Primeiro, o princípio constitucional da livre iniciativa ficou preso a esses parâmetros. Fora deles não se reconheceria a liberdade de contratar, ou seja, o contrato celebrado sem o seu atendimento seria inválido e ineficaz. Aqui perguntamos, quem manda mais, o general ou o soldado raso? Constituição ou lei ordinária?

Segundo, o que quer dizer em razão da função social do contrato, fixando o olhar aqui para o termo razão. Seria, talvez, considerar que se eu não me preocupo com a função social do contrato, se me esqueço dela, se faço de conta que não a vi, se a marginalizo, então o contrato que eu celebrei também fica taxado de inválido e ineficaz. Perdi meu tempo e meu dinheiro.

Em terceiro lugar, devemos verificar o que são esses tais limites daquela função social. Aí eu fico inteiramente perdido. Não existe placa de trânsito jurídico que me diga se eu devo trafegar a 50, 60, 90, 100 ou 120 quilômetros por fora. E se eu desobedeço ao limite aplicável, levo multa: meu contrato mais uma vez será inválido e ineficaz. E não adianta seguir o carro da frente, porque ele também poderá estar fora do limite legal.

Finalmente em quarto lugar, mas na verdade como o grande mote desta maratona, é preciso saber o que seja a função social do contrato. Função significa referir-se ao papel jurídico que ela deve exercer. Isto é mais ou menos fácil de entender: para que eu quero celebrar um determinado contrato? Social já representa um problema muito sério. Social em relação ao que? A sociedade como um todo, a um segmento, a uma das partes, a ambas?

Como instituto jurídico é evidente que o contrato (lícito, claro), tem uma função social intrínseca de proporcionar a circulação da riqueza, que é absolutamente necessária para o bom desenvolvimento da economia. Observamos que a licitude está implícita nos contratos nominados (objeto de lei aprovada pelo Congresso), enquanto os contratos inominados deverão ser examinados casuisticamente para comprovar a sua licitude. Mas, esse é um caráter natural do contrato, mais velho do que os anos de Matusalém. Trata-se do famoso choveu no molhado. Um contrato de compra e venda tem a função social de fazer com que o vendedor receba o preço e o comprador receba o bem. Ponto final!

- Ah, mas se o comprador for hipossuficiente e ele vier a passar por uma dificuldade superveniente e não puder pagar a prestação do imóvel que ele comprou? Vai ficar sem teto sob o qual morar? Não se pode aceitar essa situação, dizem os mais consumeristas. Será preciso reequilibrar as obrigações desse contrato para proteger a parte mais fraca. O resultado dessa visão é que, no limite, as construtoras todas irão à falência e muita gente ficará sem possibilidade de comprar uma casa ou um apartamento onde morar porque não existem ou porque o preço ficou proibitivo porque sobre a situação operou uma famigerada lei da oferta e da procura, a qual deu lugar ao aparecimento abusivo dos especuladores, grandes criminosos do mercado.

Como não existem parâmetros, o que é função social restou como atribuição do juiz, no sentido de identificar o seu eventual descumprimento, diante da enorme diversidade de situações particulares que se apresentam e, como sabemos, decisões folclóricas permeiam toda a nossa jurisprudência. Uma das últimas delas foi a da condenação de uma empresa de turismo brasileira que vendeu um pacote de férias de inverno, responsabilizada porque não nevou na estação de ski para aonde se dirigiram os seus clientes, "conforme prometido". A alegação foi a de que aqueles consumidores não teriam sido devidamente informados pelo fornecedor de que, contra as expectativas normais da região, poderia não nevar, mesmo em pleno inverno. Claro, que a proteção dada pela decisão que foi uma gelada para o fornecedor, foi no sentido da proteção do mais perfeito estúpido, alguém originado de um país tropical que jamais havia visto neve e sua vida e que não sabia que ela é um produto sazonal aleatório.

No caso acima a função social não atendida foi a de frustrar o legítimo direito de gozar as férias contratadas pela família, nos estreitos limites de sua caracterização, que as passou a seco.

Em outros campos do Direito Comercial o contrato também tem levado uma boa surra. Que o digam os bancos, que sofrem também diante do consumidor e em outras relações contratuais nas quais são julgados como vilões.

Mas ainda deve-se ter em vista o Direito Concorrencial, que frustra a execução de contratos firmados, chegando até mesmo a levá-los à plena ineficácia e ao chamado Direito Recuperacional que muda a vestimenta de certos contratos como e os carrega para o bojo de uma recuperação ou os mantém fora dela, nos seus efeitos regulares.

Esses dois campos de utilização do contrato serão deixados para outra conversa.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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