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O trote acadêmico e a dignidade do universitário, Eudes Quintino

O trote acadêmico e a dignidade do universitário

Já que o universitário representa a vida cultural do país e será o seu espelho no futuro, cabe-lhe a tarefa de aprimorar o relacionamento com o novato, para que seja extirpada definitivamente a ideia errônea do trote.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Atualizado em 14 de fevereiro de 2019 11:18

Os alunos do curso de medicina da Unifran (Universidade de Franca), na recepção feita às calouras, leram a elas um juramento para que, ajoelhadas, repetissem em coro o seu teor, no sentido de que "nunca recusariam a tentativa de coito" e que iriam se submeter à vontade dos veteranos, entoando "me reservo totalmente à vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus desejos sexuais." Já os calouros, também em coro, fizeram o juramento em que prometiam "usar, manipular e abusar de todas as dentistas e fafecianas que tiverem oportunidade, sem ligar no dia seguinte."1

Indiscutível que se trata de conteúdo machista, discriminatório, homofóbico, revestido de indisfarçável constrangimento. O trote vazou as divisas do campo universitário e se alastrou pelo noticiário, grupos de WhatsApp, Facebook e outros canais, obrigando o Ministério Público de Franca a instaurar inquérito civil para apurar as responsabilidades pelo feito.

Quando parecia que o trote considerado violento ou ofensivo havia cedido seu lugar a uma atitude mais cordata dos alunos veteranos, num clima totalmente inadequado, em razão até mesmo das novas posturas do alunato, ressurge num ato isolado e condenável, trazendo consequências desagradáveis à proposta acadêmica.

O que era para ser uma reunião de confraternização, no entanto, passa a ser um palco de diversões em que os alunos veteranos constrangem moral e sexualmente os novatos, instalando-os numa verdadeira antecâmara de horrores. Quebram, de uma só tacada, todas as regras recomendadas na convivência acadêmica. Em vez de proporcionarem o abraço de boas vindas, lançam a humilhação e o desprezo, num clima hostil, cercado de rivalidade.

Trata-se de um comportamento totalmente reprovável, uma vez que participam somente alunos universitários, muitos deles nos últimos anos da graduação, e que deveriam fazer prevalecer o equilíbrio, o bom senso e o comedimento na comemoração, buscando um encontro saudável, sem qualquer conotação de ameaça e violência.

A tradição, no caso específico, não tem o condão de eximir os responsáveis pelo cometimento de ilícitos penais que por ventura venham a ser praticados. É totalmente inconcebível o estudante ingressar em uma universidade, onde projetou a concretização de seus sonhos para atingir sua realização profissional, e ser recebido com desprestígio e, acima de tudo, com práticas forçadas de atos sexuais, instalando a barbárie no centro de referência educacional em que se busca o conhecimento.

A universidade, como o próprio nome revela, é união, conjunto, participação, envolvendo professores, alunos e comunidade, compartilhando e disseminando sabedoria. Retirar a violência das ruas e implantá-las na casa de ensino superior é favorecer de forma considerável a escalada que alimenta a demolição dos valores. É desolador ver o estudante agredindo o próprio estudante, hoje seu colega de banco e amanhã do convívio profissional.

A dignidade acadêmica, compreendida no alargamento constitucional previsto no artigo 1º, III como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, consagra a garantia e segurança para que o discente possa, em regime de liberdade de pensamento, com igualdade e respeito, atingir suas mais altas aspirações, contribuindo, desta forma, para a construção de uma sociedade mais justa e harmônica.

Não é proposta de se retirar o pão e o circo. É fazer com que nossos estudantes sejam realmente criativos e ordeiros em receber os novatos, proporcionando a eles um ambiente verdadeiramente acolhedor, sem qualquer coação ou constrangimento. Já que o universitário representa a vida cultural do país e será o seu espelho no futuro, cabe-lhe a tarefa de aprimorar o relacionamento com o novato, para que seja extirpada definitivamente a ideia errônea do trote.

Melhor encaminhamento seria dado ao trote se fosse eleita a proposta de doação de sangue para os hemocentros que gritam por socorro em razão do baixo estoque, ou pela inscrição como doador de medula óssea no Registro de Doadores Voluntários de Medula Óssea junto ao REDOME, órgão do Ministério da Saúde encarregado do cadastramento de doadores.

Seria o trote ideal para quem vai abraçar a carreira médica.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.






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