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Queimem, queimem!

Um breve olhar sobre precedentes de nossos tribunais serve para por em eviência o fato de que práticas judiciais inquisitivas continuam a ser admitidas e aplicadas no processo penal brasileiro.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Atualizado em 25 de abril de 2019 08:38

"Com as faces banhadas em lágrimas e o crucifixo tocando-lhe os lábios, que ela subiu aqueles cruéis degraus até o início da fogueira... Uma baforada de fumaça ergueu-se subitamente diante de seu rosto e, por um rápido momento, ela foi tomada de terror e gritou: - Água! Dêem-me água benta! Ela externou suas últimas palavras em altos brados: "Jesus!" Um secretário do rei inglês dizia bem alto: "Estamos perdidos; queimamos uma Santa!".  Por estas palavras, o escritor norte americano Mark Twain descreveu a execução da sentença de Joana D'Arc, personagem francesa na Guerra dos Cem Anos.

Muitos dos juízes que tomaram parte neste julgamento, realizado em 1431, nele exerceram também a função de acusadores. As chances de Joana ser absolvida, portanto, eram nulas.

A entrega das funções de acusar e julgar ao mesmo sujeito foi comum nos tribunais do santo ofício, ela se inscrevia em uma lógica mais ampla, denominada sistema inquisitivo. Determinados dogmas conferiam sentido àquele processo, nele o réu era idealizado como um pecador, detentor de uma verdade (verdade real) que deveria ser extraída, mesmo que pela tortura, através da atuação do "juiz" (inquisidor). Confissão e abjuração, eram o propósito dos juízes do santo fício.

Os séculos, a laicização do direito e, com muito destaque às revoluções liberais, preciptaram o rompimento com este sistema de distribuição da justiça.

A modernidade quer o "juiz sem partido", equidistante das partes, que se recolhe aos limites de suas funções - garantir a atuação legal dos sujeitos acusação e defesa e ao final julgar, em conformidade com o que lhe foi apresentado nos autos. Para ficar com as metáforas futebolísticas, não se concebe que o árbitro da partida seja torcedor ou participante do jogo, ele garante a partida em conformidade com as regras e declara quem a venceu. Assim também na arena do Direito Penal.

Este "novo" sistema processual - agora chamado de acusatório - foi amplamente consagrado pela Constituição Federal de 1988, porém, não se ilude, velhas práticas (arraigadas histórica e culturalmente) pelo império das leis, por mais veementes que sejam.

Um breve olhar sobre precedentes de nossos tribunais serve para por em eviência o fato de que práticas judiciais inquisitivas continuam a ser admitidas e aplicadas no processo penal brasileiro. Há exemplo que ilustra bem esta realidade: nossas Cortes admitem que o juiz condene o réu, mesmo quando o estado-acusação  (MP) pede sua absolvição. Isso mesmo, ainda quando "retiradas" as acusações, o juiz pode resgatá-las e condenar o (ex)acusado.

Potencializa a ilustração feita, o recente episódio protagonizado pelo excelso STF. Segundo veículos de imprensa, a Suprema Corte - sem que ninguém a solicitasse - teria determinado a instauração de inquérito para apurar, dentre outros ilícitos, a prática de crimes contra a honra de ministro da própria casa. Neste contexto, ainda sem qualquer provocação, teria havido a determinação de quebra de sigilo de comunicação, busca e apreensão e outras medidas constritivas. Solicitado o imediato arquivamento das investigações pelo sumo Órgão Acusatório, Procuradoria Geral da República, o eminente minsitro condutor do feito teria respondido negativamente.

Práticas assemelhadas,  ainda que em escala menos exuberante, são relativamente recorrentes nos domínios do processeo penal, no entanto, somente a partir da espetacularização dos casos criminais elas se tornaram conhecidas. Veio a público a figura do juiz que passa horas interrogando o réu, em busca de contradições, do mesmo modo procedendo em relação às testemunhas; que determina, sem requerimentos, a produção de provas, a decretação de prisões e que, enfim, entra em campo e participa ativamente do jogo processual. A confusão entre a figura do acusador e do julgador resta evidente.

Questões como estas há anos são debatidas pelos operadores do direito, particularmente pela academia, advocacia criminal, membros do MP e magistrura criminal. Elas comportam numerosas chaves explicativas.

Há quem sustente tais possibilidades em termos constitucionais; existe o paradoxo do Jucidiário na guarda da Constituição - o exercício do poder convida a mais poder, os juízes precisam cumprir as regras constituicionais, porém estes mandamentos limitam seus poderes; o ativismo judiciário compreende tantas vezes que os fins justificam os meios; há também aspetos culturais, fortemente enraízados, que implicam no não reconhecimento de garantias para acusados pela prática de crime.

Estas tantas hipóteses não impedem uma constatação certeira: quando se avolumam tais práticas, a defesa perde seu espaço de atuação, a justiça pende sua balança para um dos lados, como antes as multidões aplaudem, agora com uma chuva de "likes" e os réus sobem os cruéis degraus, até o início da fogueira.

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t*Rodrigo Lustosa é advogado criminal, sócio do Lustosa e Lima Sociedade de  Advogados, conselheiro seccional da OAB-GO, especialista em Direito Penal e  Processual Penal e mestre em Direitos Humanos pela UFG.

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