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Revogação do sistema de contratação obrigatória de portadores de necessidades especiais e o despropósito do PL 6.159/19

Asseguradas as vagas em decorrência do preestabelecimento de um regime de reserva, não sendo obrigatória a contratação, ante a liberação da fruição de benefício das ações afirmativas, somente se justificaria qualquer penalidade se, facultado ao exercício da empregabilidade, existindo a possibilidade ante o percentual da reserva de vagas não alcançado, houvesse negativa por alguma modalidade de discriminação.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Atualizado às 10:43

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Ainda é situação bastante comum a continuidade de aplicações de lançamentos fiscais (multas administrativas), assim como o ajuizamento de Ações Civis Públicas, cujo objetivo seja condenar empresas a se obrigarem ao cumprimento da "cota" imputada pelo artigo 93, da lei 8.213/91. Tal fato leva a crer que a comunidade jurídica, talvez, não tenha se atentado para revogação do dispositivo.

Desde 2009, quando o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência por meio do decreto 6.949 de 25 de agosto de 2009, o cumprimento das cotas estipuladas pelo artigo 93 da lei 8.213/91, devia ser entendido não como uma obrigação mas, tão somente, como uma forma de reservar vagas. Neste sentido, a empresa deveria dispô-las em processos seletivos, sempre que não atingido o referido percentual aplicado ao quantitativo de empregados.

Desde então, diversos regionais e o TST já vinham adotando essa ideologia, ainda que com outra fundamentação. Entendiam que quando comprovadas as tentativas pelas empresas de contratação desses profissionais, não havia que se apena-lás pelo não cumprimento da, até então entendida, "cota". Todavia, a obrigação de contratar permanecia.

Hodiernamente, essa desobrigação se sedimentou com a revogação tácita do artigo 93 da lei 8.213/91, diante de nova legislação ordinária, específica, que trata do tema com ideologia diversa. Trata-se do Estatuto das Pessoas com Deficiência, instituído pela lei 13.146/15.

Há revogação tácita do artigo 93 da lei 8.213/91. Esta lei, que estabelece os Benefícios da Previdência Social e regula parte da matéria do Estatuto impondo às empresas a contratação de PCD's/PNE's e seus percentuais, em relação a este objeto, terminou por ser revogada pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência (lei 13.146/15) por incompatibilidade, e pelo advento de lei posterior, específica, que regula a matéria na integralidade.

O Estatuto se debruça na voluntariedade e na liberdade pública individual do PCD/PNE, revogando o dispositivo que obrigava a contratação até o limite da "cota". Não existindo obrigação de aceitar o emprego, a empresa não pode ser obrigada a contratar. O objetivo da novel legislação é garantir o acesso ao emprego, não obrigar ao trabalho.

Também, o Estatuto afirma que os PCD's/PNE's concorrerão à vagas em igualdade de oportunidades. A igualdade de oportunidades, é direito a não discriminação, que é essencial à preservação dos direitos fundamentais e à análise e aplicação do próprio Estatuto. É possível que o PCD/PNE, como qualquer outra pessoa, não deseje o emprego; não queira trabalhar em determinada empresa ou ramo; ou desenvolver determinada função. É possível, também, que pretenda empreender ou integrar o mercado informal.

A ideologia da liberdade trazida pelo Estatuto é tão absoluta, que ele mesmo desobriga à fruição de benefícios decorrentes de Ação Afirmativa, neles incluídos, regimes ou sistemas de obrigatoriedade de inclusão no mercado de trabalho por cotas estabelecidas.

Diante da ideologia e regramento do Estatuto, para a aplicação e manutenção de qualquer penalidade, há a necessidade de comprovar a discriminação na seleção da empregabilidade facultativa. Veja que a garantia instituída pela lei repousa no direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sem exista discriminação, ativa ou passiva. É este o termo, também, usado pelo artigo 7º, XXXI da CRFB e 611-B, XXII da CLT.

Visa o Estatuto impedir que os empregadores neguem o acesso aos PCD's/PNE's que desejam trabalhar. Aspirando, que seja assegurada a participação no processo seletivo, em igualdade de condições, dentro do limite da reserva de vagas estabelecida. Não há mais a obrigatoriedade legal de cumprimento "da cota".

Além disso o Estatuto, quando quis criar cotas e reservas, assim o fez como, por exemplo, na outorga de exploração dos serviços de taxi, na área de estacionamentos abertos ao público, na disponibilização de vagas em estabelecimento como hotéis e pousadas, na reserva de unidades habitacionais na aquisição de imóvel para moradia própria, entre outras disposições.

Parece que qualquer punição, a partir do decreto 6.949/09, ratificado pelo Estatuto, decorrerá do impedimento, seja por prática discriminatória ou limitativa (em existindo déficit, não possibilitar a inclusão no processo seletivo do deficiente). Não é mais possível alegar descumprimento de "obrigação de contratar".

Por este motivo, o PL 6159/19, de autoria do Poder Executivo parece, neste aspecto, pretender regular obrigação inexistente e, por isso, nos parece desproposital; sem razão; inócuo.

Pode parecer estranho que aqui se defenda a revogabilidade, ainda que tácita, do artigo 93 da lei 8.213/91 e o continue utilizando para enquadrar o déficit da empresa no preenchimento da "cota". Não obstante a revogação tácita pelo decreto 6.949/99 e Estatuto, tendo em vista a função social da empresa e a necessidade de inclusão do PCD/PNE no mercado de trabalho - desde que queiram se empregar - é razoável entender que a norma permanece vigente somente como uma indicação do percentual a ser aplicado sobre o quantitativo de empregados para a reserva de vagas, não mais como uma forma de obrigar a empresa a contratar até seu preenchimento e, mesmo se não conseguir, ser apenada.

Daí se pode concluir que, asseguradas as vagas em decorrência do preestabelecimento de um regime de reserva, não sendo obrigatória a contratação, ante a liberação da fruição de benefício das ações afirmativas, somente se justificaria qualquer penalidade se, facultado ao exercício da empregabilidade, existindo a possibilidade ante o percentual da reserva de vagas não alcançado, houvesse negativa por alguma modalidade de discriminação que seria, segundo a lei: toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. Fora desta hipótese entendemos não ter mais como penalizar empresas pelo não cumprimento da "cota".

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t *Luiz Calixto Sandes é sócio do Kincaid | Mendes Vianna Advogados.

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