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A padaria do seu Manoel e a Petrobras ou como algumas espertezas geraram risco sistêmico

Seu Manoel, dono da "Panificadora Flor do Jardim de Alá", precisa de recursos para realizar novos investimentos em sua empresa, que vai indo muito bem. Depois de desistir de um empréstimo bancário por causa dos juros muito caros, seguiu o conselho de um dos seus fregueses, brilhante advogado, relativo a um aumento de capital nos moldes daquele que a Petrobras pretende realizar.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Atualizado em 15 de setembro de 2010 14:27


A padaria do seu Manoel e a Petrobras ou como algumas espertezas geraram risco sistêmico

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa*

Seu Manoel, dono da "Panificadora Flor do Jardim de Alá", precisa de recursos para realizar novos investimentos em sua empresa, que vai indo muito bem. Depois de desistir de um empréstimo bancário por causa dos juros muito caros, seguiu o conselho de um dos seus fregueses, brilhante advogado, relativo a um aumento de capital nos moldes daquele que a Petrobras pretende realizar.

Desta forma, Seu Manoel vendeu para clientes da sua padaria direitos sobre a futura produção, com uma carência de cinco anos para começar os primeiros fornecimentos. Em troca, os investidores emitiram em favor do nosso amigo, os certificados correspondentes, que foram utilizados para o pagamento do referido aumento de capital. Como aqueles documentos não eram dinheiro sonante, Seu Manoel evidentemente precisou vendê-los a outros interessados, o que somente conseguiu fazer com grande deságio. Ora, o dinheiro que finalmente entrou no caixa da padaria correspondeu a uma importância bem menor do que o valor dos certificados referidos. O conselheiro do nosso herói lhe ensinou que este mecanismo é chamado de securitização, uma invenção muito legal. Na época própria Seu Manoel, de um lado, precisaria pagar os investidores pelo valor de face dos certificados e, de outro, fornecer os produtos de sua padaria aos adquirentes daqueles direitos. E ainda esperar lucro, o que será uma grande incerteza em todo este cenário.

A Petrobras anda atrás da mesma receita. O Governo, seu controlador, muito criativo, pretende aumentar o capital daquela com direitos que possui sobre o pré-sal. O dinheiro do pré-sal, como nos foi prometido, resgatará de uma vez por todas a miséria brasileira. Mas tais direitos precisam antes ser avaliados e isto somente se conseguirá de forma satisfatória mediante o infalível método da bola de cristal. Isto porque muita água correrá por baixo das plataformas que vierem a explorar o esperado filão de ouro negro antes que seja possível desenvolver a tecnologia adequada, eficiente e comercialmente econômica. Assim sendo, 5, 8 ou 80.000 dólares por barril futuro, no fundo não passa mesmo de um chute. Se houver mesmo tanto petróleo lá em baixo, um dia ele poderá ser explorado. Afinal de contas, depois que o homem inventou a roda e descobriu a alavanca, já fez coisas antes consideradas impossíveis. Mas, pergunto, como, quando e a que preço?

Superada esta fase, pagos tais direitos à Petrobras em papéis, esta fará o aumento de capital correspondente. Mas, tanto como aconteceu com Seu Manoel, aqueles papéis no capital da empresa precisarão virar dinheiro e terão que ser vendidos a quem desejar assumir risco de tal natureza. Bem, o deságio deverá ser muito expressivo, ainda se recorrendo àquela mesma bola de cristal. O governo certamente poderá encontrar investidores mais facilmente do que o nosso padeiro porque será capaz de empurrar aqueles papéis garganta abaixo dos fundos de pensão das empresas públicas e não será a primeira vez que estas engolirão micos pantagruélicos. Azar dos cotistas, mais uma vez, com a sua aposentadoria muito comprometida.

Esta invenção fere dois princípios fundamentais do direito societário relativos a aumentos de capital: o da idoneidade do bem utilizado em relação ao objeto social da companhia; e o do seu valor efetivo. No último caso - e a imagem aquática mais uma vez é perfeita - o resultado será o conhecido fenômeno do aguamento do capital: seu valor contábil mostrar-se-á muito superior ao real.

De outro lado, os papéis recebidos do Governo em pagamento de sua parte no capital da companhia não se prestam diretamente à realização da atividade da empresa em encontrar o famoso pré-sal e explorá-lo efetivamente com lucro, tendo de ser vendidos.

Ora, da mesma forma que um raio não costuma cair no mesmo lugar, as "velhinhas de Taubaté" não se multiplicam às centenas pelo mercado e o resultado, pelo contrário, é que muitos investidores atentos já abandonaram o barco e outros certamente logo os seguirão. A Petrobras perdeu muito do seu valor de mercado e o preço das ações despencou mais do que cotação dos tucanos para as próximas eleições.

Além de ilegal, o modelo revela-se, portanto, completamente ineficaz e o prejuízo que o governo está causando à sua jóia da Coroa é muito maior do que o proporcionado pela invasão militar de suas instalações num país logo aí ao lado. Nos dois casos a lei societária estabelece a responsabilidade civil correspondente.

No fim e ao cabo, Seu Manoel ainda estará em situação melhor: o trigo para produzir seus pães e doces está no mercado. Basta ter dinheiro para comprá-lo. O petróleo do pré-sal poderá ser outro caso igual àquele do final da década de sessenta do século passado, quando uma empresa com ações na Bolsa pretendeu extrair petróleo do xisto betuminoso. Jamais se viu uma gota de óleo, tendo aquela sociedade ido para a Cucuia e seus acionistas amargado prejuízo total. Apenas depois de mais de vinte anos foi desenvolvida uma tecnologia simplesmente razoável para o caso. A história se repete, sempre como uma farsa.

Finalmente, sabe-se que o Seu Manoel e o Governo terão de enfrentar outro problema, gerado pela não subscrição pelos minoritários das ações a que terão direito nesse (des)aumento de capital. Aí o Governo precisará arranjar mais fontes de recursos porque se o aumento de capital não for totalmente subscrito, ele ficará legalmente frustrado ou então terá que ser contada outra história para os acionistas.

Mas a história termina por aqui somente em relação ao nosso caro padeiro porque no que diz respeito à Petrobras e ao seu controlador, as espertezas se multiplicam, passando a envolver outros entes estatais, isto é, o próprio Tesouro Nacional, o Fundo Soberano, o BNDES, e a CEF, com o estabelecimento de elevado grau de risco sistêmico (representado pela brincadeira das pedrinhas do jogo de dominó que vão caindo umas depois das outras depois do primeiro piparote).

Conforme noticia a imprensa econômica especializada, o Governo pretende aumentar o capital do BNDES e da CEF por meio da conferência de ações da Petrobras, respectivamente nos montantes de R$4,5 e R$2,5 bilhões. O sistema de alavancagem permitiria que essas instituições aumentassem a sua capacidade de novos empréstimos em R$100 bilhões, ou seja, dez vezes o valor do capital aumentado.

A operação fere diretamente dois fundamentos do direito societário e bancário. Quanto ao primeiro, dá-se a mesma situação do aumento de capital da Petrobras, ou seja, suas ações no capital do BNDES e da CEF não correspondem a bens idôneos à operação dessas entidades. O mais grave, no entanto, está no fato de que, sendo instituições financeiras, é obrigatório que o seu capital somente possa ser aumentado em dinheiro (lei 4.595/1964, arts. 1º, IV e V; 23; 26; 27 e 28).

A lei é muito clara em dizer que o capital inicial das instituições financeiras públicas e privadas somente pode consistir em dinheiro. Aumentos de capital que não sejam em dinheiro ficam limitados expressamente à incorporação de reservas e à reavaliação de parcelas de bens do ativo imobilizado. Como se verifica, a lei não contempla a hipótese de aumento de capital de instituições financeiras por meio da conferência de ações.

O quadro geral a ser formado representa aquilo que no meu longínquo tempo de inspetor do BC do Brasil era chamado de troca de chumbo. Como a lei proibia (e continua proibindo que os bancos emprestem a seus administradores e a empresas das quais estes participem), o Banco A emprestava a tais pessoas do Banco B e vice-versa, cada um se responsabilizando perante o outro por eventuais inadimplementos, via a celebração informal de acordos de cavalheiros.

No caso das ações da Petrobras, ocorrerá um perigoso vai-e-vem, surgindo também a figura ilegal da participação recíproca indireta de capital aguado; (i) seu capital será formado com direitos fantasmagóricos do pré-sal; (ii) tais direitos se transformam em ações da empresa; (iii) elas são utilizadas para aumentar o capital do BNDES e da CEF; (iv) o Governo recebe de volta teoricamente os valores iniciais que aportou; (v) para fazer dinheiro que possa ser emprestado, as ações devem ser vendidas no mercado, com queda sensível da sua cotação; (v) e a roda-viva continua. E não se esqueça que a Petrobras antes mesmo de tudo isto já alcançou um preocupante nível de endividamento. É só olhar o seu balanço. Mais ainda, o pedágio que a Petrobras pagará por essa esperteza em diversos serviços técnicos e jurídicos de apoio está na ordem de R$505 milhões. Para nada!

Está presente, portanto, o conhecido fenômeno do risco sistêmico, fundado sobre um ativo altamente improvável e avaliado pelo critério do chutômetro e sobre uma troca de chumbo com as ações geradas por esse mecanismo esperto.

Não é à toa que o mega investidor George Soros pulou fora já faz algum tempo, tendo vendido suas ações da Petrobras. Mas sempre haverá especuladores que assumirão conscientes o risco correspondente, certos de que poderão ganhar muito dinheiro passando o mico rapidamente adiante para outros investidores desavisados. Afinal de contas sabe-se que a Missão Impossível por excelência está em manter um trouxa junto do seu dinheiro. Entre esses trouxas estarão pessoas que investirão o seu fundo de garantia, que ficará sem fundos e sem garantia.

O que mais me estranha é que estes fatos até agora mereceram nenhuma ou pouquíssima atenção. Parece que houve um anestesiamento geral e profundo dos analistas do mercado. Ou então deve ser que porque eu não aprendi nada de mercado de capitais nem de direito bancário ao longo dos meus mais de quarenta anos de vivência nessas áreas, o que prova que devo ser muito burro.

Há outros aspectos envolvidos, como perdas para o Tesouro, maquiagem de balanços, custos a fundo perdido para o contribuinte, a conversão do fundo soberano em reles súdito, mas isto fica para outro capítulo da novela.

Com a palavra, quem de direito, autoridades e investidores. Leis a respeito destas operações temos em profusão. Mas, como bem lembrou Dante Alighieri em sua obra, de que valeu a Justiniano a formidável tarefa de haver deixado à posteridade o seu Corpus Júris Civilis, se não houvesse que o fizesse valer: "De que serviu Justiniano preocupar-se em ajustar os bridões, se ainda tens a sela vazia?" (Purgatório, Canto VI).

Enquanto isto, nosso inefável Presidente criou um fato político com o pré-sal, do qual se tem aproveitado, pairando sobranceiramente acima de todos, tendo colocado sob a sua chinela até mesmo o Rei Luís XIV.

Bem, seja quem for o próximo governante, essa terrível bomba de efeito retardado certamente explodirá no seu colo. E não adiantará pensar que tais entidades serão salvas porque se revelarão "too big and public to fail". Alguns "Bancos do Brasil" já quebraram no passado. E se não quebrarem por intervenção do Governo, a conta salgada pesará indistintamente sobre toda a sociedade brasileira. Salvar-se-á da quebra o seu Manoel, se naquele tempo ainda houver trigo para fazer o seu pão.

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*Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP






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