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O Brasil poderia ser levado à Corte da Haia como resultado do Caso Battisti?

A Itália insiste em exigir a entrega de Cesare Battisti. Além da tentativa de reverter a decisão através de recurso ao STF, as autoridades italianas têm se empenhando em pressionar de todas as formas o governo brasileiro. Agora a Itália lançou mão de nova ameaça: o recurso à Corte Internacional de Justiça da Haia.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Atualizado às 09:22


O Brasil poderia ser levado à Corte da Haia como resultado do Caso Battisti?

Carmen Tiburcio*

O caso Battisti ganhou novo episódio. Após a decisão do Presidente da República, que optou por não extraditar o italiano, as opiniões mais uma vez se dividiram. Se em outros capítulos o inconformismo com a permanência de Battisti no Brasil decorria da controvérsia sobre a natureza de seus crimes, agora as queixas baseiam-se no suposto desacerto da decisão presidencial. Quanto ao ponto, vale lembrar que o STF - mesmo órgão que decidiu sobre a natureza política ou não do crime - determinou expressamente que a palavra final sobre a questão era do Presidente, chefe do Executivo, responsável pela condução das relações internacionais no país; opção tradicional no sistema constitucional brasileiro e no direito comparado.

Ignorando tais circunstâncias, a Itália insiste em exigir a entrega de Cesare Battisti. Além da tentativa de reverter a decisão através de recurso ao STF, as autoridades italianas têm se empenhando em pressionar de todas as formas o governo brasileiro. Não bastasse a anormalidade das ações nesse sentido - diante de causa alegadamente desprovida de motivação política - a Itália lançou mão de nova ameaça: o recurso à Corte Internacional de Justiça da Haia.

Diante desse novo cenário, alguns esclarecimentos se fazem necessários. A Corte Internacional de Justiça da Haia é o principal órgão judiciário das Nações Unidas, conforme estabelecido no artigo 92 da Carta da ONU. Sua jurisdição pode ser contenciosa ou consultiva. A jurisdição contenciosa se manifesta essencialmente em três situações distintas: i) diante de declaração de natureza geral, submetendo-se o Estado à Corte com base no art. 36 de seu Estatuto; ii) quando, no caso concreto, as partes envolvidas consentem em submeter a disputa à Corte; e iii) se há previsão expressa em tratado firmado entre os Estados para a jurisdição da Corte sobre os conflitos dele decorrentes.

Vale lembrar, aliás, que a primeira hipótese, conhecida como jurisdição compulsória opcional, resulta dos esforços do delegado brasileiro Raul Fernandes ainda na época da extinta Corte Permanente de Justiça Internacional. A Corte Internacional de Justiça manteve esse sistema que representa importante avanço no Direito Internacional. Note-se que nem o Brasil e tampouco a Itália emitiram declaração reconhecendo a jurisdição compulsória da Corte da Haia.

De outro lado, o tratado Brasil Itália não prevê a jurisdição da Corte para dirimir controvérsias fundadas em suas disposições. Ou seja: também não poderia haver jurisdição da Corte com fundamento no tratado. Dessa forma, salvo diante de consentimento específico do Brasil para submissão do caso à Haia, a Itália não poderá submeter a questão à Corte Internacional de Justiça.

Ainda quanto ao ponto, vale destacar que sequer opiniões consultivas sobre o caso poderiam ser emitidas. A atuação da Corte nesse sentido decorre de solicitações provenientes de órgãos da ONU ou de suas agências especializadas, inexistindo possibilidade de solicitação de opinião consultiva pela República Italiana. Tratando-se de disputa pontual envolvendo apenas dois Estados, é pouco provável que qualquer organismo internacional se preste a transformar o caso em objeto de deliberação da CIJ.

Por fim, não é demais lembrar que o não acolhimento de pedido de extradição é prática absolutamente corriqueira no cenário internacional. Veja-se, por exemplo, que diversos países - por motivos os mais variados - negaram pedidos de extradição feitos pela República Italiana. Entre os vários casos, vale destacar aqueles relacionados à solicitação de entrega de indivíduos suspeitos de envolvimento com a Máfia (Marisa Merico/Reino Unido; Vito Roberto Palazzolo/África do Sul e Vito Bigione/Namíbia), acusados de homicídio (Mario Lozano/Estados Unidos) e sequestro (agentes da CIA/Estados Unidos), bem como ex-militante das "Brigadas Vermelhas" (Marina Petrella/França). Em nenhum desses casos houve recurso à Corte da Haia. Nessa linha, é de se destacar que a própria República Italiana não raro rejeita pedidos de extradição. Dois episódios são dignos de nota: o primeiro envolvendo suspeito de participação em atentado terrorista (Mohammed Rafik, suspeito de fazer parte de grupo extremista responsável por atentado terrorista em Casablanca/Marrocos); o segundo acusado de integrar grupo de guerrilha (Abdullah Ocalan). Neste último, note-se, houve insatisfação do país que formulou o pedido de extradição - a Grécia, sem que, contudo, houvesse mudança da decisão das autoridades italianas, tampouco recurso à CIJ.

Outros países, diante de solicitações provenientes dos mais diversos Estados e por conta de diferentes delitos, tiveram seus pedidos de extradição indeferidos. Ilustrativamente, os Estados Unidos tiveram pedidos de extradição negados pela Suíça (envolvendo o diretor Roman Polanski), pela Colômbia (Freddy Rendon Herrera), por Israel (Abraham Mondrowitz) e pelo Canadá (Abdullah Khadr). A Rússia já viu negado pedido formulado aos Emirados Árabes, ao passo em que a República Dominicana negou pedido oriundo da Venezuela (ex-Presidente Carlos Andres Perez Dies). Ainda como exemplo, é de se citar a recusa da Rússia diante de pedido formulado pelo Reino Unido (Andrei Lugovoi, acusado de matar por envenenamento ex-agente da KGB residente no Reino Unido), bem como a negativa norte-americana diante de pedido oriundo da Irlanda. Nenhum dos países citados recorreu a órgão internacional.

Nesse cenário, a reação da Itália, afora ser juridicamente infundada, confirma que as razões que levaram o Presidente da República a negar a entrega de Cesare Battisti têm fundamento.

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*Professora Adjunta de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Internacional da Faculdade de Direito da UERJ e da pós graduação da UGF. Mestre e Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Virginia, EUA. Consultora no escritório Luís Roberto Barroso & Associados

 

 


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