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Joga pedra na Geni

Mario Oscar Chaves de Oliveira

O Brasil atualmente vive uma terceira onda regulatória, que se caracteriza pelo fato de as restrições não visarem apenas a informar ou a dissuadir os consumidores, mas que visa a, inconfessadamente, promover o esvaziamento econômico de certas atividades produtivas, como tentativa de inviabilizar a oferta e reduzir o consumo de determinados produtos.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Atualizado em 29 de março de 2011 12:45

Joga pedra na Geni

Mario Oscar Chaves de Oliveira*

O Brasil atualmente vive, como muito bem definiu o prof. Gustavo Binenbojm, uma terceira onda regulatória, que se caracteriza pelo fato de as restrições não visarem apenas a informar ou a dissuadir os consumidores, mas que visa a, inconfessadamente, promover o esvaziamento econômico de certas atividades produtivas, como tentativa de inviabilizar a oferta e reduzir o consumo de determinados produtos.

O regulador pretende fazer as escolhas pelo indivíduo e o cardápio de medidas vai da proscrição de certas substâncias ao banimento da exibição de produtos aos olhos do consumidor.

Acentua o professor que há um rosário de objeções jurídicas a tais medidas, mas, acrescente-se, o que vale constatar é que se tenta impor uma ditadura do politicamente correto, conceito utilizado para inibir aqueles que se opõem ao pensamento dos "sábios".

Se o Estado babá, que infantiliza os indivíduos, só é bom para os que almejam a posição de curadores (que representam os incapacitados), tem razão o cientista político Marcos Troyjo ao dizer que seu oposto, o Estado omisso (que ele denomina de Estado-babão) também não se justifica.

Tal colocação é de ser feita, desde logo, para que não se diga que se está a defender a omissão do Estado, pois o que se pretende é que o Estado exista para o indivíduo e não que a sociedade viva para o Estado.

Não parece esse, todavia, ser o ideário da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que, nos últimos dias, vem sendo objeto de diversas manifestações na mídia favoráveis e contrárias à sua maneira de atuar, estas logo atribuídas, pela indústria antitabagista (indústria, pois suportada por verbas milionárias de algumas entidades, sediadas em outros países), às Consultas Públicas 112 (clique aqui) e 117 (clique aqui), gancho para reiterar a cantilena de abuso de poder econômico das grandes corporações (no caso do tabaco, oportuno lembrar que o Estado é o grande "sócio" e, de longe, o que fica, através da tributação, nas várias fases e elos da cadeia produtiva, e no produto final, com a parte do leão).

O direito à manifestação de pensamento é garantido pela Carta Magna da República, assim como o de informação. Portanto, a defesa à atuação da Anvisa é lícita, pois é da essência dos regimes democráticos a exposição de ideias diversas e antagônicas. Por isso, aliás, alguns indivíduos ou organizações sentem imensa dificuldade em conviver com a democracia. Afinal, é-lhes difícil aceitar igualdade e liberdade como princípios norteadores. O que causa espécie, porém, são os argumentos utilizados para a defesa da autarquia.

A Anvisa, com todas as vênias aos que pensam diversamente, não age estritamente dentro de suas competências legais. Seus poderes são os de regulamentar e fiscalizar, o que é diferente - e bem diferente - de invadir a seara do legislador. A regulamentação tem um limite claro: a lei, ou seja, não pode ir além do que a lei dispõe (e não esqueçamos que a lei, que regula o fato social em crise, é votada pelos representantes legais do povo). Não se pode, em um passe de mágica, transformar burocratas técnicos, não submetidos ao crivo do voto, em legisladores porque lhes falta, para tal, um mínimo de legitimidade como representantes do povo.

Está-se exagerando? Por que será que, inúmeras vezes, tem a Advocacia Geral da União repelido normas que a Anvisa quer editar? Exemplos? Patentes de medicamentos, publicidade de medicamentos, de bebidas, de alimentos. Se a Agência age dentro de suas competências legais, por que a AGU manifesta-se contra? O histórico autoritário da Agência não a recomenda.

Dizer-se que as consultas públicas representam intenções democráticas da Anvisa, e que excesso de democracia atrapalha, é simplesmente terrificante, pois, mais do que nunca, elege-se como modelo o Estado-babá, que nulifica os cidadãos. E mais falaciosa é a afirmação que as consultas públicas são uma concessão da Anvisa.

A lei que criou esta Agência, fiel ao espírito do Estado-babá, ao contrário das que instituíram as outras agências não prevê expressamente consultas públicas obrigatórias. É de se lembrar que a consulta pública é a forma que a autarquia tem de compulsar a opinião pública e é um direito do cidadão e dos representantes da sociedade civil emitirem opinião.

Classificar essa obrigação como concessão democrática e dizer-se que "excesso de democracia atrapalha", no que tange ao fumo, remete a William Foge, ex-diretor do CDC (Center for Disease Control) que afirmou, certa vez, que "O livre arbítrio não está entre os poderes dos fumantes" e a Scott Ballin (presidente da coalizão de Fumo ou Saúde), que explicou: "o produto [fumo] não tem benefícios potenciais... Ele causa vício, portanto as pessoas não têm a opção de fumar ou não fumar1". Como se vê, um belo "exemplo" de concessão democrática.

Também é muito estranho que se possa classificar como "crime" atitudes que originalmente provieram do próprio órgão regulatório, em uma conveniente perda de memória. Quando a informação não convém, é logo classificada como indutora ao erro, pelos "curadores".

Ainda com relação às Consultas Públicas, é verdade que a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco manifestou-se contra. Por quê? As consultas em referência têm como base as discussões ocorridas no COP 4, decorrente da CQCT (Convenção-Quadro para Controle do Tabaco - clique aqui). As Convenções-Quadro, trazem recomendações para implementação de determinadas políticas, mas elas, em si, não são mandatórias. Lembre-se, aliás, que a CQCT não foi aprovada na forma do parágrafo 3º do art. 5º da Constituição (clique aqui), que exige que o tratado, para ter status constitucional, seja aprovado, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.

Portanto, estamos diante da CQCT, que ingressa no ordenamento jurídico, com equivalência a lei ordinária. E o que foi resolvido em Montevidéu, por exemplo, sobre aditivos? Recomendações parciais e provisórias, eis que houve nas discussões grandes divergências. Segundo o documento final, cada país signatário deverá adotar, gradualmente, medidas aprovadas por autoridades competentes, e que o uso de aditivos seja regulamentado de acordo com as leis nacionais. Ora, se no Brasil não há lei que restrinja a utilização de aditivos, e se é princípio constitucional que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, seria a Anvisa a autoridade competente para regulamentar o assunto? Ou se trata de mais uma invasão da competência do legislador? Ainda sobre a matéria, há recomendação do COP 4 que sejam observadas as circunstâncias e prioridades nacionais.

As circunstâncias brasileiras são simples. O fumo tipo "burley" é diretamente atingido. E é falacioso dizer-se que como é o Brasil o maior exportador de fumo, isso em nada afetaria o cultivo da espécie. O que se exporta, é bom saber-se, é um "blend" (mistura de fumos) e, para formá-lo, o "burley" tem que estar palatável. Causar, através de uma resolução, perda de US$ 2,7 bilhões, ou abalar a posição do país de maior exportador e segundo maior produtor de fumo não tem qualquer importância. Afinal, a burocracia se retro-alimenta de suas decisões.

Está tão difundido o conceito do Estado-babá que, mesmo no Legislativo, há iniciativas de proibir-se a utilização de alcoólicos (vinhos, por exemplo) nas dependências dos três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário, inclusive governos estaduais e prefeituras. Brinde-se, pois, com água, como fazem os muçulmanos. A fúria regulatória volta-se contra seus próprios criadores.

Tudo isso é dito porque a defesa de pontos de vista tem que estar alicerçada na verdade, e o indivíduo deve estar protegido da tirania da maioria. Afinal, como disse Rodrigo Constantino, somos cidadãos e não súditos. Informar não é distorcer a verdade, nem difundir meias-verdades, em um regime democrático.

Mas, em se tratando de tabaco, o que vale é jogar pedra na Geni.

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1 O Estado Babá - Harsany, Davis - Litteris, 2011, pg. 110

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*Titular do escritório Mario Oscar Oliveira & Advogados Associados

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