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A jurisprudência do STJ e a taxa média de mercado: agora os juros ficaram do jeito que o diabo gosta

A questão dos juros bancários suscitou intenso debate no meio jurídico, reflexo da tensão entre o desejo de consumo de uma massa de pessoas alçadas para o patamar acima da linha da pobreza e o meio que lhes permite acesso a bens de consumo duráveis: o crédito.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Atualizado em 13 de julho de 2011 22:43

 

A jurisprudência do STJ e a taxa média de mercado:  agora os juros ficaram do jeito que o diabo gosta

Elpídio Donizetti*

A questão dos juros bancários suscitou intenso debate no meio jurídico, reflexo da tensão entre o desejo de consumo de uma massa de pessoas alçadas para o patamar acima da linha da pobreza e o meio que lhes permite acesso a bens de consumo duráveis: o crédito.

E não poderia ser de outra forma em um país com um nível de poupança baixo e péssimos salários, geralmente pagos àqueles que precisam prover por meios próprios aquilo que a infraestrutura estatal se mostra incapaz de oferecer. Afinal, parece desarrazoado exigir do trabalhador humilde que economize a vida inteira para comprar um carro à vista e, nesse ínterim, continue dependendo de transporte público caro e ineficiente, gastando muitas vezes horas entre o trabalho e sua residência. A decisão, no caso, não pode ser diferente: o consumidor irá recorrer ao crédito.

Historicamente, o empréstimo de dinheiro a juros suscitou reações adversas daqueles que ocuparam o tempo refletindo sobre as relações humanas. Como dizia Aristóteles: "o objeto original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentavam a quantidade do próprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da expressão: a prole se assemelha aos progenitores, e os juros são dinheiro nascido do próprio dinheiro); logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza" [ARISTÓTELES. Política, traduzido do grego por Mário Gama Kury, Inst. Nac. Liv., ed. UNB, 1981.p. 288].

A religião cristã, que tem na Bíblia seu diploma normativo e moral, sempre se posicionou contrariamente à usura, como se lê no livro do Êxodo, 22:25: "Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor que impõe juros".

Igualmente o Alcorão, de forma mais enérgica, dispõe que "os que praticam a usura serão ressuscitados como aquele que foi perturbado pelo Satanás" (2º surata, versículo 275).

Dado que a experiência jurídica é uma forma de experiência cultural, as vozes que emanaram dos filósofos e religiosos sensibilizaram os primeiros juristas. Nem poderia ser diferente. Quando razão e espírito convergem, há que se prestar atenção nas conclusões a que chegaram.

Assim, desde os romanos, segundo Mackeldey [na verdade, muito antes deles], já havia combate à usura, tarifando as taxas de juros permitidas, sendo que a mais elevada era de 8% ao ano [Droit romain. p.386].

Ora, direis os banqueiros, no entanto, verdadeiros agiotas institucionalizados e assediados pelos titulares do poder, ávidos de dinheiro para a reeleição: como todo produto ou serviço, a disponibilização do crédito é feita mediante remuneração, cobrada pelos bancos na forma de juros.

Ocorre que os bancos não produzem sua matéria-prima (dinheiro). Uma vez que o nível de poupança nacional é baixo - menor que 20%, segundo as estimativas dos analistas de mercado -, os bancos precisam captar dinheiro no exterior, também mediante o pagamento de juros.

Então, o banco pega emprestado no exterior e empresta novamente o capital, cobrando mais juros do consumidor. A diferença líquida entre a taxa cobrada pelos bancos ao disponibilizar capital e os juros pagos ao captar recursos no mercado é chamada de spread, que, no Brasil de hoje, ultrapassa os 25%, conforme apurado pela FEBRABAN, uma das maiores taxas do mundo.

Em toda atividade econômica, o custo da matéria prima é repassado ao consumidor. Com o crédito bancário isso não é diferente. Ou seja, quanto maior o spread, maiores tanto o lucro da instituição financeira como o custo do crédito para o consumidor.

Apenas para ilustrar a questão, em 2005, os economistas José Luís Oreiro e Luiz Fernando de Paula realizaram um breve confronto entre o spread no Brasil e em diversos outros países. Enquanto aqui a diferença entre o que os bancos pagavam para captar dinheiro e o que recebiam de juros ultrapassava a casa dos 40%, no México não passava de 12%. Já no Chile, os bancos ganhavam apenas 5,64%. Na Europa, o crédito era bem mais barato: 3,15%. E nos EUA, os bancos ganhavam módicos 2,77%.

A despeito da importância que nossa Constituição deu à livre iniciativa, elevando-a a fundamento da República (art. 1º, IV da CF/88 - clique aqui), nenhum ordenamento jurídico comprometido com o equilíbrio contratual e com a defesa do consumidor (art. 170, V da CF/88) se compraz com o lucro excessivo, com uma verdadeira agiotagem institucionalizada, que acaba por sufocar o mercado.

Acrescente-se, também, que segundo o art. 192, caput da CF/88 - que ainda não foi revogado, destaque-se -, o sistema financeiro nacional é "estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir os interesses da sociedade, em todas as partes que o compõem [...]". No mesmo sentido, prevê o art. 173, §4° que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise [...] ao aumento arbitrário dos lucros". Quer algo mais abusivo e contrário ao desenvolvimento do que a cobrança de juros a taxas superiores a 100% ao ano?

Por essas e outras razões é que sempre adotei a tese de que o art. 192, §3º da CF/88, quando vigente, era autoaplicável e que o art. 4º, IX, da lei 4.595/64 (clique aqui) não teria sido recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Nessa linha de raciocínio, e observando-se as normas do CC (clique aqui), as instituições financeiras não estariam autorizadas a cobrar juros superiores a 12% ao ano. É o que sempre sustentei em meus votos.

Afinal, era preciso que se exercesse algum controle sobre a lucratividade bancária e, via de consequência, sobre os direitos dos "consumidores de crédito". Mesmo não sendo especialista, creio que em nenhuma outra atividade econômica as autoridades reguladoras permitem lucros tão exorbitantes.

Contudo, essa tese foi superada por reiterados posicionamentos dos tribunais superiores, notadamente a súmula vinculante nº. 7 (clique aqui), do STF e o julgamento paradigma proferido pelo STJ no REsp 1.061.530/RS (clique aqui). O que restou sacramentado é que há de se observar a taxa média de mercado. Resumo da ópera: em razão do que se decidiu no Recurso Especial representativo da controvérsia (CPC, art. 543-C - clique aqui) a nós, juízes e desembargadores integrantes da "justiça ordinária" - não no sentido de ser ruim; que Deus me livre de tamanha blasfêmia -, cabe tão somente verificar se a taxa de juros está de acordo com a taxa média de mercado. Por força dessa fonte formal do Direito (a jurisprudência vinculativa), agora os juízes são compelidos a chancelar os juros exorbitantes previstos nos contratos bancários. Não agir assim é atentar contra os princípios da celeridade e efetividade. Faz-se aqui, desmancha-se acolá.

Uma vez que a taxa será média, e não máxima, poder-se-ia pensar que o resultado dessa definitiva orientação jurisprudencial, que, de acordo com o sistema normativo em vigor, está muito acima da própria lei, não seria de todo desastroso para o pobre consumidor brasileiro, que, para pagar o carro mais caro do mundo, a fatura da telefonia mais cara do mundo e tantos outros produtos (incluindo os medicamentos) e serviços mais caros do mundo, lança mão de créditos à taxa de juros mais elevadas do mundo - isso é que é mania de grandeza.

Ocorre que essa taxa média é aferida não por parâmetros fixados por autoridades equidistantes dos interesses em conflito. Pasmem os senhores - aliás, no Brasil, escândalo algum é capaz de causar pasmos, muito menos as escandalosas taxas de juros -, a taxa média é apurada pelo Banco Central, mas a partir das taxas cobradas pelas próprias instituições de crédito. Isso é o mesmo que colocar raposas para tomar conta do galinheiro e depois mandar o leão verificar quantas galinhas cada uma comeu.

O fato é que, pela aplicação desse eufemismo, denominado "taxa média de mercado", é comum ao julgador constatar e ter que engolir contratos cujos juros chegam à casa de 12 ao mês (o que, capitalizados mensalmente, representam 289,60% ao ano), e não 12% ao ano, como estabelecem a Constituição Federal e o nosso relegado CC. O arquitetado embuste serve ao menos para aliviar a consciência do juiz. Não julgamos mais se os juros são ou não extorsivos e se a operação caracteriza agiotagem institucionalizada, mas sim se está de acordo com a "taxa média".

Além desses aspectos, é preciso ter em mente que o governo Federal, em sucessivos mandatos, utiliza mecanismos macroeconômicos de elevação dos juros reais, ao argumento de é preciso desestimular o consumo, como meio de conter o dragão inflacionário. De um lado os pobres e remediados (são os que mais sofrem os efeitos deletérios das altas taxas de juros) são estimulados até não mais resistirem aos encantos do vestido novo, do carro vermelho e do aparelho celular que rebenta pipoca e de outro o governo e bancos sobem a taxa de juros. Essa combinação é paradoxal, para não dizer demoníaca, porque ainda acredito em Deus, o que deixa o "coisa ruim" fora da minha linha de raciocínio. Mas não da linha de raciocínio dos islâmicos que, como se viu, já associavam os juros extorsivos às atividades ligadas a Satanás.

Como nessa altura do campeonato já não ando acreditando em mais nada, nem mesmo no resultado da loteria esportiva, que tinha como sagrado e verdadeiro, duvido se a contenção da inflação, de fato, constitui a genuína razão da exorbitância das taxas de juros. Como pecador recalcitrante, confesso que chego a pensar que a finalidade do aumento da taxa de juros e da permissão - via ação e inação governamental - é melhorar os minguados lucros dos bancos, que chegam a triplicar o investimento em um ano. Afinal, eles, juntamente com as empreiteiras, figuram como os principais financiadores de campanhas políticas. Pai, perdoe esse pobre juiz por mais esse ultraje; ele não sabe o que faz, muito menos o que diz (Lucas 23:34).

Quanto à lucratividade dos bancos, o argumento da livre iniciativa não convence. Aqueles que observam o panorama atual do setor presenciam diversas fusões e incorporações, de forma que o mercado bancário encontra-se concentrado na mão de poucos. Nesse quadro, é fácil prever que a ausência de competição permite que esses atores, sob os olhares compassivos do Judiciário, elevem à estratosfera a "taxa média de mercado", segundo os próprios interesses e a ganância de todos.

Aos consumidores restava a trincheira do Judiciário. Agora, com a decisão que amordaça a justiça ordinária, está tudo dominado. Somos impedidos de escutar Aristóteles e de observar os preceitos das milenares práticas espirituais. Está do jeito que o diabo gosta. Resta-nos apenas, de joelhos no chão, orar para o restabelecimento do respeito à Constituição e ao CC, que a Justiça, de olhos vendados, diz não ser aplicável aos banqueiros. Pai, não permita que as autoridades monetárias e o Legislativo deste pobre país sejam seduzidos pelas promessas da ausência de regulação, corolário do livre mercado; pai, faça essa boa gente lembrar do que ocorreu no setor bancário estadunidense, o qual, pela ausência de rédeas, produziu uma crise mundial sem precedentes, que alcançou o mundo, como uma tsunami, embora só uma marolinha até agora tenha chegado às praias brasileiras; pai, levante a venda dos olhos dos juízes brasileiros, de forma a permitir-lhes enxergar o desequilíbrio e assim, revendo jurisprudência já assentada, retirem o manto da coisa julgada que está a assegurar a agiotagem dos bancos brasileiros. Amém.

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*Desembargador do TJ/MG. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/MG e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Professor de Direito Processual Civil no Instituto Universitário Brasileiro. Palestrante, autor de diversas obras jurídicas e integrante da comissão de juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

 

 

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