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O que podemos tirar de Law and Order? (ou a indisfarçável relevância do Direito)

Com o intuito de traçar paralelos entre o Direito norte-americano e o Direito brasileiro, o advogado ilustra como o seriado Law & Order retrata a busca de seus cidadãos por Justiça.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Atualizado em 12 de agosto de 2011 11:47

O que podemos tirar de Law & Order? (ou a indisfarçável relevância do Direito)

José André Beretta Filho*

É bem provável que o leitor já tenha visto ao menos um episódio do seriado Law & Order, que após 21 anos encerrou suas apresentações em 2011. Talvez também tenha visto Law & Order Special Victims Unit ou Law & Order Los Angeles. Se isso não ocorreu, quem sabe viu The good wife, ou Ally McBeal, Damages ou Boston Legal? Se mais antigo, quem sabe assistia Perry Mason?

Se os seriados na televisão não parecerem tão interessantes, talvez o leitor tenha lido algo de Scott Turow (Acima de qualquer suspeita, O ônus da prova) ou de John Grisham (A firma, O homem que fazia chover, O júri).

De qualquer forma, é muitíssimo provável que o leitor tenha visto alguns dos seguintes filmes de cinema: 12 homens e uma sentença, Anatomia de um crime, O veredito, O julgamento final (Class Action), As duas faces de um crime, A testemunha de acusação, Meu primo Vinny, A costela de Adão (Adam's rib), O vento será sua herança (Inherit the Wind) ou O sol é para todos (To kill a mockingbird).

O Direito, pelos seus temas e dramas, sempre foi alvo de muito interesse, até porque ele está em tudo o que fazemos, temos e até mesmo o que somos (brasileiros, filhos de X e Y, empregados, proprietários, herdeiros, mutuários, etc.), tudo juridicamente qualificado.

Num mundo de tantas desigualdades, esse interesse também se manifesta pela natural sede de Justiça que todos temos e que procuramos saciar por muitos meios. Alguns o fazem pelas próprias mãos; outros, via negociações e; alguns, por via de disputas legais, mas essas são formas em que temos que ser os próprios personagens da ação.

A grande maioria, contudo, que não pode ter seu dia no tribunal ("a day in the Court"), encontra na arte uma forma útil para catalisar essa aspiração por Justiça e até mesmo sublimá-la ou descompensar frustrações.

Nesse sentido, os norte-americanos são muito hábeis, daí o sucesso dos livros, seriados e filmes que, ao longo dos tempos, abordam assuntos que incomodam, ora com mais agressividade, ora com mais humor, porém sempre com o intuito de trabalhar sentimentos humanos para conseguir uma audiência cativa.

Não é de se estranhar, então, feitas as concessões necessárias à sua transposição para a arte, que o Direito norte-americano é guindado a uma condição de modelo aspirado por muitos, em particular por nós brasileiros.

Quais seriam, então, os elementos que tanto fascinam? No meu entender são vários, dos quais vou elencar alguns.

Em primeiro lugar, usam-se temas que são socialmente relevantes e importantes, ultrapassando o limite do corriqueiro. Assim, trabalham-se questões como o aborto, a discriminação, a violência sexual em vários sentidos, o abandono infantil, a tortura, o crime organizado, as drogas, ou seja, qualquer um será capaz de se ver atingido ou poder ser afetado pelo debate. Trata-se da proximidade dos temas com as nossas vidas.

Em segundo lugar, as produções incorporam avaliações não apenas técnicas, mas pessoais (por exemplo: quando os personagens questionam-se sobre aspectos éticos na abordagem de uma investigação, os vínculos que podem surgir com as vítimas e mesmo com os criminosos), mostrando que a operação do Direito não é algo frio, o resultado único, direto e rígido da aplicação da lei ou da jurisprudência. O Direito é vida.

Em terceiro lugar, os trabalhos artísticos definem o seu próprio tempo, isto é, o momento em que o assunto surge até sua solução. Neles, o tempo é sempre o adequado.

Em quarto lugar, há uma forte utilização de situações que requerem julgamentos em tribunais, isto porque é importante ressaltar que pelo Direito se faz Justiça, quando a simbologia do Poder Judiciário é relevante.

Na esteira do aspecto anterior, na média, a Justiça sempre se faz, ainda que às vezes não triunfe. Nos casos em que ela triunfa, passa-se a ideia de que ela foi dada na medida certa ao caso. Nos casos em que ela não triunfa, ou o faz apenas em parte, deixa-se sempre o gosto de Justiça não realizada (= injustiça), em geral, fruto de brechas legais, mas com a mensagem subliminar de que, na próxima vez o resultado será diferente. Em outras palavras, há impunidade, mas não como regra e/ou como algo muito provável.

Os magistrados norte-americanos são retratados, na quase esmagadora maioria das vezes, como pessoas sensatas, discretas, competentes e responsáveis. Os promotores, firmes, ciosos de suas atribuições legais.

Já os advogados, bem, estes são pintados das mais diversas maneiras: ricos, gananciosos, poderosos, pobres, bêbados, astuciosos, trabalhadores, bon-vivants, o que explica o fato de que a advocacia, ao lado de ser uma profissão atraente pelo glamour que retrata, é possivelmente a profissão mais odiada entre todas. De qualquer forma, no agregado, são os advogados, em última instância, competentes naquilo que fazem.

Some-se a isso a capacidade que os norte-americanos têm para criar um linguajar técnico (o legalês), mas que é de fácil absorção pelo senso comum. São exemplos: AKA (also known as / também conhecido como); DA (district attorney / promotor distrital); RICO (abreviatura dada a uma antiga lei sobre crimes de colarinho branco); murder two (para designar o homicídio doloso e ainda assim por um ângulo dele); John Doe (nome dado a alguém cujo nome real não é identificado).

Tudo isso é transmitido, apesar de ser o Direito norte-americano complexo em sua estrutura federativa, na enormidade de seus textos legais, que tratam de detalhes, num sistema judiciário fragmentado, nos elevados custos da litigância, na litigância exacerbada (típica do espírito mais belicoso dos norte-americanos) e na presença da política na forma de eleição de magistrados e promotores.

E o Direito brasileiro, como é percebido pelos brasileiros? Como um dinossauro; lerdo, distante da realidade, favorável aos social e economicamente mais fortes, com profissionais de condutas éticas não claras (veja-se por comparação, como as novelas brasileiras introduzem os advogados em suas tramas), com formação profissional questionável, com um Supremo Tribunal Federal que vive a manifestar na mídia e expor suas questões internas de modo, por vezes, irresponsável (isto em sentido oposto à circunspecção, excessiva, da Suprema Corte norte-americana).

Não há dúvida, o Direito norte-americano é o do cidadão. O Direito brasileiro é de alguns. Aí a diferença, aí o alerta, aí a possibilidade da reflexão.

A reflexão é importante porque esse "culto" ao Direito norte-americano que a arte mostra indica que há uma fome por Direito, por um Direito que seja uma intervenção positiva na sociedade, em seus diversos níveis.

Atrevo-me a apontar alguns aspectos que talvez possam ser considerados nesse processo de raciocínio, a lista é grande, não é conclusiva e, às vezes, poderá esvaziar o glamour que a arte empresta ao Direito:

1. Rever todo o sistema educacional desde a base - povo educado é povo que discerne, decide melhor, é menos sujeito a manipulações e pode se qualificar melhor e, pela melhor qualificação, pode ter mais respeito para com a lei, gerando menos litígios.

2. Sem descaracterizar o nosso federalismo, rever a estruturação do Poder Judiciário no Brasil, em que um exemplo é: por que a Justiça do Trabalho, que é Federal, não está unificada dentro da Justiça Federal?

3. Qual a razão de se manter um sistema de Tribunal do Júri sem que suas decisões não sejam por unanimidade? Afinal, pode haver, parcela de dúvida remanescente? Aqui é preciso indicar que é provável que boa parte do público brasileiro não saiba que no Brasil, além do fato de o júri ser cabível apenas em poucos casos, suas deliberações se dão por maioria de votos.

4. Qual a razão a sustentar um processo civil/criminal de longa duração? Por que não se dá aos magistrados maior poder de limitar a utilização indevida do processo legal com chicanes seguidas?

5. Por que a investigação criminal não é incorporada integralmente ao próprio processo criminal, de modo que desde sua fase inicial a investigação seja conduzida, conjuntamente, pela polícia e pelos promotores de Justiça, deixando de haver a fase "policial" e, após, a "processual"? Afinal, a investigação não é própria do processo?

6. Por que a gestão dos métodos, processos e procedimentos judiciais é feita de modo atécnico?

7. Por que se dá maior peso a concursados que tenham curso superior, sobretudo com formação em Direito, para exercerem funções públicas no Poder Judiciário, onde eles não serão operadores do Direito em si e, portanto, não há razão para exigir dos mesmos conhecimentos que se esperam de magistrados e advogados? Pondere-se que, com isso, os gastos com o Judiciário poderiam ser mais eficazmente aplicados.

8. Por que os prazos legais são ficções?

9. Por que a delação premiada não avança para a total imunidade em casos de relevante interesse público?

10. Por que a prescrição não é regressivamente inversa com base no tipo do ilícito?

11. Por que o contencioso administrativo não se torna final e vinculativo?

O Direito norte-americano não é perfeito, não é a solução e não é, também, um paradigma necessariamente válido porquanto se formou a partir de experiências e heranças históricas muito distintas. No entanto, nele há elementos que mostram novas formas de abordar conceitos e agir, ideias essas que podem contribuir para a realização prática de um melhor Direito e que merecem ser debatidas, até mesmo para gerar novas reflexões, sobre novas formas de atuar.

Concluo para dizer que, embora Direito não seja sinônimo de Justiça, não pode ele, também, ser percebido como seu antônimo, havendo a necessidade premente de se mostrar que pelo Direito busca-se Justiça.

É isso o que podemos tirar de Law & Order.

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*Advogado do escritório Advocacia Muzzi


 

 

 

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