MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. O perigoso desprestígio da democracia

O perigoso desprestígio da democracia

J. C. Ismael

Em novembro de 1947, um trecho do discurso que Winston Churchill pronunciou na Câmara dos Comuns ainda hoje é lembrado quando se acusa a democracia de ser um regime político insatisfatório.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

Atualizado em 12 de julho de 2005 09:51

O perigoso desprestígio da democracia


J.C.Ismael

*

Em novembro de 1947, um trecho do discurso que Winston Churchill pronunciou na Câmara dos Comuns ainda hoje é lembrado quando se acusa a democracia de ser um regime político insatisfatório. Exaltando-a, afirmou que é a pior forma de governo, com exceção de todos os outros experimentados ao longo da História. Claro que ele preferiu não tocar no débito a Stalin: sem a morte de 20 milhões de russos, entre eles 8 milhões de soldados, a democracia americana não tremularia, vitoriosa, em Iwo Jima, - mas essa é outra história. Por outro lado, se Churchill pretendeu ser original é porque desconhecia afirmação parecida feita, trinta anos atrás, por seu compatriota, o pastor anglicano e scholar William R. Inge. Célebre por sua visão crítica e pessimista do mundo, Inge rendera-se igualmente ao óbvio: a democracia pode ser racionalmente defendida não pelo fato de ser o ideal, mas o menos ruim dos sistemas de governo. E, talvez por ter sido educado na Inglaterra, Jawaharlal Nehru (em entrevista ao jornal The New York Times em janeiro de 1961) deu uma declaração parecida ao lembrar os esforços para convencer os hindus das benesses da democracia, embora não custe lembrar as brutalidades cometidas por ele para silenciar os rebeldes da Caxemira e a tentativa de anexar Goa, - mas essa também é outra história.

Churchill, Inge e Nehru nada mais fizeram que repercutir o sentimento comum a todos os que se conformam com os defeitos da democracia porque tem a suprema virtude de garantir a liberdade,- eleita como o bem mais precioso do homem desde que descobriu que podia pensar por si próprio.

Foi baseado nessa premissa que o poeta e estadista ateniense Sólon (639? -559? a.C.) defendeu a idéia de que um governo só é legítimo se for escolhido livremente pelo povo. Embora a prática da democracia retroceda a sociedades primitivas, Sólon passou a ser considerado o seu inventor. Naquele tempo, a democracia direta, exercida por conselhos ou magistrados eleitos por sorteio ou aclamação, mostrou-se factível nas pequenas cidades-estado gregas e posteriormente nas repúblicas medievais. A população, politizada, debatia e votava em praça pública leis que poderiam ser modificadas ou canceladas, conforme os resultados da sua aplicação. Mas o governo do povo pelo povo, ao ser reinventado, foi contaminado por uma visão aristocrática do poder, uma vez que o exercício dos direitos políticos não se estendia à maioria da população helênica, formada por estrangeiros e escravos. É quando o brilho de Atenas começa a esmaecer: as condições sociopolíticas tornam-se mais complexas e, esnobando as reivindicações populares, os governantes cuidam dos próprios interesses, impondo um verdadeiro regime oligárquico, o principal motivo que levou filósofos como Sócrates a questionar-lhe a legitimidade. As coisas se complicam ainda mais quando a unidade religiosa, fundamental para manter a consistência do regime, começa a se esfacelar. A partir de então, a história das idéias democráticas atravessaria vários e eletrizantes capítulos que qualquer livro de História conta.

Essa introdução é indisfarçável pretexto para uma pergunta provocante: basta à democracia - não à de mentirinha, como a da atual Venezuela, por exemplo - conformar-se em ser o menos pior dos regimes de governo ou, para garantir seu futuro, deve ser constantemente aperfeiçoada? Ninguém com um mínimo de lucidez discordará que ela atravessa uma crise de credibilidade em muitos países. Basta lembrar que nos EUA o número de eleitores absenteístas cresce a cada eleição, - o mesmo desinteresse demonstrado na América Latina pelos jovens, principalmente os brasileiros. Há cerca de quatro anos, uma pesquisa realizada pela instituição privada chilena Corporação Latinobarômetro comprovou aquilo que já se sabia: dois entre cada três patrícios com idade entre 16 e 24 anos mostraram-se indiferentes ao fato de viver sob uma democracia, apenas 3% se diziam interessados no assunto, enquanto 39% dos entrevistados acreditam nas suas vantagens, embora mal saibam defini-la, 42% achavam que os partidos políticos são dispensáveis para o seu funcionamento e 77% não tinham o menor interesse pelo assunto. Foi o mais desalentador resultado entre os dezessete países do continente, mesmo sem quantificar a grande porcentagem de eleitores que votam em qualquer nome, logo esquecido. Esses números seriam provavelmente mais perturbadores se o voto não fosse, paradoxalmente, obrigatório.

Sejamos francos e realistas. A razão de tal desmotivação é facilmente explicada: pouco importa ao cidadão brasileiro poder assobiar a Internacional em praça pública ou xingar o governo, se está desnutrido, desempregado, tratado como animal pelo serviço público de saúde e desprotegido por uma polícia algemada pelo cipoal de suborno e despreparo. O Poder Judiciário, entorpecido, atua com leis obsoletas que privilegiam a impunidade dos corruptores e corruptos e, com sua máquina travada e prestígio zerado, só provoca desalento em quem o procura para a pronta satisfação dos seus direitos. O Poder Executivo, eterno refém dos interesses pecuniários da sua base de sustentação e movido a fisiologismo, definha numa anemia crônica, pulverizando a independência necessária à sua legitimidade. Diante desse quadro sombrio, perguntaria o nosso assobiador: de que vale a democracia se, além de aumentar as desigualdades econômicas, não é capaz de resgatar a cidadania proporcionando emprego, segurança, serviço social eficiente, educação plena, aposentadoria digna?

A democracia brasileira, resgatada da caserna para impor-se como guardiã das liberdades individuais, está portanto longe de se consolidar como o modelo ideal de governo. Mas por que não evitar-lhe a falência moral, por exemplo, experimentando seriamente o parlamentarismo, acabando com a praga dos partidos de aluguel e do nepotismo, punindo exemplarmente a corrupção estrutural nos órgãos públicos, instituindo o voto distrital e exigindo um nível mínimo de instrução para os candidatos, enfim, promovendo uma profunda reforma política? Não é preciso ser um gênio para explicar esse imobilismo do balcão de negócios em que se transformou o Poder Legislativo: os políticos, mimados por uma ominosa impunidade, a mais endêmica da história republicana, são cada vez mais identificados com picaretas e bandoleiros da mais baixa extração: basta ver como o noticiário político e o policial se confundem. Pouco lhes importa aperfeiçoar a democracia não porque jamais leram uma linha de Aristóteles, Locke, Montesquieu ou Tocqueville, mas porque do jeito que está, sem rumo e frouxa, lhes serve, e aos seus comparsas, para um único objetivo: amealhar robustas pilhagens. Em resumo, a decepção do brasileiro com a classe política é fato inquestionável, pois ele se sente iludido por um sistema de governo incapaz de lhe suprir as aspirações básicas e de punir os ladrões da coisa pública. No século 18, o quaker William Penn, fundador da Pensilvânia, não escondia seu desencanto ao dizer que bastava deixar as pessoas imaginar que governam para serem governadas. Por sua vez, cientistas sociais do porte de Vilfredo Pareto, igualmente frustrados, identificam a democracia com uma fraude, uma oligarquia burocrática disfarçada porque defende os interesses de poucos em benefício de poucos. O Brasil contemporâneo poderia lhes servir de exemplo. Até quando? Será que os órfãos do totalitarismo não estão começando a salivar?
____________

*Advogado, jornalista e escritor






___________

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca