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A contradição em curso: o Estado Democrático de Direito encobre a corrupção? Genealogia dos impasses na atualidade

O autor enaltece as manifestações contrárias à corrupção, encabeçadas por personagens que não se pautam com a mídia comprometida ou com grupos econômicos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Atualizado em 22 de setembro de 2011 11:50

Jayme Vita Roso

A contradição em curso: o Estado Democrático de Direito encobre a corrupção? Genealogia dos impasses na atualidade

"Criamos entidades, personalizando abstrações; eis a causa dos nossos maiores erros" (Marques de Maricá, Máximas, Pensamentos e Reflexões, Rio, 1850)

1 - Na Quaresma, a traição de Judas, por suborno, recebendo trinta moedas de prata, comoveu-me, como nunca dantes sucedera.

A morte de Judas, arrependido, por enforcamento, fincou-se em meu coração e na minha alma, porque o "preço do sangue" foi a compra do campo do oleiro. Conhecido depois como "campo de sangue" (Mt 26, 14-16; 23-15; 27, 3- 10 e 47 - 49).

2 - Duas palavras significativas: traição e corrupção. Ambas, entrelaçadas, provém do latim. A primeira, de tradere = entregar (verbo); a segunda, de corruptio = decomposição, putrefação, desnaturação, depravação, indução ao imoral.

O objeto destas reflexões distancia-se, pela natureza dos destinatários, de uma incursão de moral teológica. Mas o espaço está intersectado com os efeitos da corrupção reinante erga omnes (contra todos os homens). Isso, sem dúvida, interessa. E, ao contrário, colocando-a à calva, que os exemplos sirvam para melhorar, corrigir, edificar, analisar, aperfeiçoar, purificar, reformar os costumes e os hábitos sociais, as práticas corporativas e as agendas públicas, com seus intérpretes de passagem (períodos para os quais foram eleitos) ou os permanentes, "donos de direitos adquiridos" (funcionários públicos e assemelhados por ficção legal).

3 - Conforta que a revolta contra a velada ou explícita corrupção, esteja partindo de personagens qualificados, sobretudo economistas que não se pautam com a mídia comprometida ou com grupos econômicos ou financeiros, nem com os governantes do momento ou de carreira, menos com partidos da frente oposicionista.

Um economista, Robert B. Reich, é autor de um livro impecável e destemido (After Shock - The Next Economy and America's Future, N.Y., 2010). Nada esconde ou omite: Wall Street é um cassino; o capitalismo está nas mãos frenéticas dos banqueiros; a crise americana é profunda e tem tentáculos imorais; as offshores fazem as empresas americanas perderem a sua nacionalidade (identidade); a intervenção do governo na economia às vezes traz vantagens; as estafas das companhias de seguro; os escândalos no Congresso, no Executivo e no Judiciário; os efeitos corrosivos do lobby; a descaracterização da classe média e a indispensável "revolução" política... Não é por menos que o autor participa, por exemplo, do "Centro de Integridade Política".

Um paralelo curioso: o último censo apontou Brasília com altíssimo índice de gente com bens e ganhos. O mesmo ocorre com Washington, onde o presidente Obama, dobrado pelo fascínio do poder, que lhe permite inclusive ter à disposição um Boeing 747-600, seguindo Bill Clinton, generosamente, vem distribuindo "subsídios federais" às seguradoras de saúde e aos fabricantes de remédios. Agora, inventa um "pacotão" para gerar empregos, artificialmente. E, no Congresso, essas bondades foram concedidas à indústria nuclear, aos mega empreendimentos de agronegócios (etanol) e para o apelidado carvão limpo (pág. 111/113). E Bush e Obama não se esqueceram dos personagens de Wall Street, com empréstimos, sem juros, de bilhões de dólares, bondades que vem como atribuindo contratos lucrativos para empresas oferecerem no exterior seus produtos, apenas isso.

Resultado: a classe média empobreceu e se tornou mais vulnerável como nunca, inclusive porque é a que mais paga impostos, sobretudo nos produtos de consumo permanente. E a educação? Só os ricos alcançam os preços cobrados pelas escolas e universidades, logo, a classe média fica mais rebaixada (desconcertante o que se passa na California, onde o "Economist" a qualificou de medíocre).

4 - Enquanto se processa a mudança estrutural apontada, com a arquiconhecida decadência americana, com a corrupção permeada em subsídios, sustentados por "mediadores"; enquanto se cogita o desconcertante do presente, as raízes do pensamento econômico encontram sua gênese na distorção dos princípios econômicos sérios.

E Philippe Simonnot, francês, jornalista e economista de nomeada, dedicou à corrupção quarenta e quatro páginas (de 443 a 474) do antigo e respeitado livro de cabeceira de muitos personagens interessados na economia autêntica, distante da matemática (39 Leçons d'Économie Contemporaine, Paris, 1998). E como o concluiu?

Assim:

"A verdade é que o corrompido aproveita de uma situação criada artificialmente pelo Estado e que uma espécie de mão invisível a conduz a servir o bem comum. Se a administração fosse composta apenas de abelhas virtuosas como a colmeia de Maudeville, apostamos que seria levado o Estado a paralisar e, com ele, a economia. Logo, em conclusão, não é a corrupção que se deve combater em primeiro lugar, mas o Estado que é criminôgeno" (p. 747).

Qual escolha?

5 - Tendo que optar, elejo, com tranquilidade, o destemor de Jeffrey D. Sachs, que, em valioso artigo (A onda global de crises corporativas, "O Estado de São Paulo", 8/5/11, A22), aguilhoa que "nos países desenvolvidos, a ligação cada vez maior entre políticos e grandes empresas causa uma rotina de subornos, fraudes e negociatas de dar inveja às nações mais pobres".

Com a coragem que engala os virtuosos, Sachs aponta a impunidade como a geratriz perpétua dos escândalos, dos comportamentos inescrupulosos, porque, apontando as causas da fuga dos clássicos controles de atos nocivos, primeiramente, "as grandes empresas são agora multinacionais, enquanto os governos permanecem presos ao âmbito nacional" e "as empresas são as principais financiadoras das campanhas políticas em países como os EUA, onde os próprios políticos, muitas vezes, estão entre os sócios deles, no mínimo, discretamente beneficiados pelos lucros corporativos". E recordo a sabedoria do Marques de Maricá, outra vez, lembrando: "A economia é companheira inseparável da probidade".

Além disso, qualquer mudança legislativa, para frear as práticas corruptoras, é brecada no Congresso Americano, pelos lobistas e pelos advogados das empresas (como também no Brasil é frequente). É o dizer dele.

Realista, Sachs conclui que "no momento em que a desigualdade de renda e os déficits orçamentários atingem níveis sem precedentes, graças à incapacidade política - e, em alguns casos, até mesmo operacional - dos governos de obrigar os mais ricos a pagar impostos", porque nada detém a cadeia concatenada de corrupção.

6 - Haveria salvação com novas regras para o Direito Internacional?

No quarto Colóquio do Reseau Francophone de Droit Internatinal (RFDI), realizado em Paris, entre 4 e 5 de maio de 2007, estudiosos dessa elegante área jurídica, propuseram algumas medidas a serem implementadas por meio de Convenções Internacionais (na OCDE, para os negócios internacionais comerciais sujeitos à corrupção por meio de mecanismos alinhados à harmonizações legislativas e práticas nacionais); providências a serem tomadas pelo Banco Mundial nos seus financiamentos, levando em conta a corrupção; uniformização de políticas europeias de combate à corrupção e, passando pela responsabilidade na gestão dos recursos naturais na África Central, onde a corrupção é ali praticada, concluir a reunião com um retórico tema: "Do 'dilema do prisioneiro' ao 'jogo de integração': da incriminação penal da corrupção ativa transnacional" (Daniel Dormoy, La corruption et le droit international, Bruxelas, 2010).

Os próprios participantes desse respeitado evento, frente ao emaranhado de construções jurídicas, em particular no Capítulo V (p. 169 / 210), genuflexam-se a elas, percebendo-as como entraves, mas constatam a necessidade de uma estratégia internacional das jurisdições nacionais à internalização institucional, precedida da internacionalização normativa descentralizada à internacionalização normativa integrada. Complicado, sim, porque o suborno inibe qualquer mudança séria e eficaz, que fira os interesses dos criminosos endinheirados. A maioria deles faz as leis.

Mudanças de paradigmas são necessárias. Quem as implementa? Quem lhes dá adequação á ordem jurídica internacional, sem filigramas que favoreçam os criminosos? Quem admitirá a institucionalização de um Tribunal Internacional tendo competência "longa manu"? Quem está disposto a colaborar com funcionários no serviço, imunes à corrupção? Quem tem coragem de levar à cadeia magnatas que "dão empregos e pagam impostos"?

7 - Se possível, Dio volendo, pretendo retornar e discutir a transcendência do Banco Mundial no combate à corrupção e seus êxitos restritos aos negócios que conclui, bem ou mal. Talvez, esboçar uma pista desse intricado e lamentável problema para ser capaz de coibir, em grande parte, seus nocivos efeitos sociais e morais.

Referências bibliográficas

MARICÁ, Marquez de. "Máximas - Pensamentos e Reflexões do Marquez de Maricá", Rio de Janeiro, 1850

BRANCO, Camilo C. "As Virtudes Antigas", Livraria Editora, 4ª edição, Lisboa, 1943

MIRANDA, Nicanor. "Vocabulário do Padre Manuel Bernardes", Prefeitura do Município de São Paulo, 1ª edição, São Paulo, 1962

SIMONNOT, Philippe. "39 leçons d'économie contemporaine", Éditions Gallimard, 1ª edição, França ,1998,

DORMOY, Daniel. "La Corruption et le Droit International", Bruylant, Bruxelles, 2010

REICH, Robert B. "After Shoch - The Next Economy and America's Future", Alfred A. Knopf, USA, 2010

New Left Review, Bell & Bain, Glascow, London, 2010

BYBEE, Keith J. "All judges are political - Except when they are not", California, 2010

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*Jayme Vita Roso é advogado e fundador do site Auditoria Jurídica

 

 

 

 

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