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O julgamento do HC 107.801/SP pelo STF: dolo eventual ou culpa consciente?

Gamil Föppel El Hireche e Gabriel Dalla Favera de Oliveira

A questão não é passível de redução a um modelo específico que resolva todos os problemas; para a busca da solução, é imprescindível a análise das circunstâncias do caso concreto, o que inviabiliza o estabelecimento de qualquer regra.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Atualizado às 08:27

Gamil Föppel El Hireche

Gabriel Dalla Favera de Oliveira

O julgamento do HC 107.801/SP pelo STF: dolo eventual ou culpa consciente?

Há pouco mais de 10 dias, o STF reavivou, no julgamento da ação de habeas corpus de número 107.801 (clique aqui) - cuja relatoria coube ao Em. Ministro Luiz Fux -, a inacabável polêmica tocante à tênue linha que aparta os institutos do dolo eventual e da culpa consciente; diferenciação esta que, como se verá, representa uma abissal mudança no tratamento do caso concreto.

É necessário, logo de início, pontuar que inexiste teoria capaz de oferecer critérios satisfatórios para diferenciar os dois institutos, fundamentando-se aí, portanto, em grande parte, a maninhez na aplicação da matéria. Em termos temerariamente simplificados, pode-se dizer que existe a figura do dolo eventual quando o agente representa como possível a ocorrência da lesão ao bem jurídico e, ainda assim, consente com a sua prática; no que se refere à culpa consciente, ainda que representada a possibilidade da ocorrência da lesão, o agente não consente em momento algum com a sua realização.

É dizer, o traço distintivo entre as duas figuras situa-se exatamente no comportamento do agente perante a possibilidade de ocorrência do resultado lesivo. Se consente com a sua ocorrência, agiu com dolo eventual de praticá-lo; se não consente, trata-se de culpa consciente.

Demasiada abstrata, contudo, a diferenciação, máxime quando se trata da necessidade de investigação da psique do autor, o que, sabidamente, é tarefa que não se pode realizar com segurança. Razão pela qual todo e qualquer critério que se queira estabelecer para determinação do elemento volitivo que permeia a conduta do agente pode servir apenas de mero indício, pois é irrefutável a necessidade de se analisar a plêiade de circunstâncias do caso concreto.

O mandamus referido fora impetrado em favor de determinado sujeito que, na condução de veículo automotor e sob o efeito de bebidas alcoólicas, atropelou a vítima que, posteriormente, veio a falecer. Nos mesmos moldes da reticente e mecânica orientação dos tribunais pátrios, na hipótese mencionada, reconhecida a embriaguez do condutor, houve pronúncia pela prática de homicídio (obviamente) doloso.

Em sede dos tribunais pátrios, é comuníssima a realização de um juízo automático sobre o elemento volitivo do agente: estar sob o efeito de álcool conduz, geralmente, ao reconhecimento do dolo eventual na conduta, pois presumido o consentimento com o resultado.

Flagrante o perigo, porque a questão do reconhecimento do elemento subjetivo do agente na prática de determinada conduta só se faz possível mediante análise de diversas circunstâncias, não se podendo reduzir tal processo à verificação de determinadas condições específicas, in casu, a ebriedade.

É necessário, desde já, traçar um paralelo entre a situação do réu encarada sob os vieses do reconhecimento do dolo eventual ou da culpa consciente. A primeira diferença verificável é que, reconhecido o dolo, imputa-se a prática do delito previsto no artigo 121, caput, do Código Penal (clique aqui), cuja competência para julgamento é do Tribunal do Júri, ou seja, o juiz togado (de direito) somente presidirá os trabalhos, quem condena ou absolve é o Conselho de Sentença, que é formado por leigos.

Assim, torna-se um julgamento muito mais emotivo, sensitivo, apaixonado que técnico; o que, especialmente nesta hipótese de atropelamento sob efeito de álcool, é deveras prejudicial ao réu, haja vista permeado de alta carga de preconceito. Em verdade, existe quase um juízo antecipado de culpabilidade; fato este que se pode comprovar muito facilmente pela observação do tratamento conferido a casos similares em sede destes programas televisivos de cunho sensacionalista. É muito comum a execração pública e desmedida do autor, o que, inequivocamente, é refletido no (e pelo) Conselho de Sentença, haja vista que é composto por "pessoas do povo".

Mais que isso, a diferença entre o mínimo das penas do homicídio doloso (artigo 121 CP) e do homicídio culposo de trânsito (artigo 302 CTB - clique aqui) é de 04 (quatro) anos!

Deste modo, explicitada a flagrante diferença no tratamento da conduta a depender da modalidade do elemento subjetivo que se reconheça (dolo ou culpa), é preciso enaltecer o posicionamento adotado pelo Excelso Pretório que superou o que denominou de "banalização no sentido de atribuir-se aos delitos de trânsito o dolo eventual".

Nos termos do voto da lavra do Min. Luiz Fux, relator da ação, "observa-se ter havido mera presunção acerca do elemento volitivo imprescindível para configurar-se o dolo, não se atentando, pois, para a distinção entre dolo eventual e culpa consciente.". Extremamente salutar a conclusão, pois, dada a complexidade da matéria, não se pode mais admitir mera presunção do elemento volitivo do agente, especialmente quando se presume o dolo, haja vista que isto configura um panorama mais gravoso em todo e qualquer aspecto. Tendo isto considerado, o STF entendeu pela desclassificação do delito para homicídio culposo de trânsito.

Reconhecido o valor do referido acórdão, é necessário, contudo, advertir quanto aos seus fundamentos. Numa análise mais detida, é possível notar que, no manejo das teses argumentativas para sustentar a decisão pela desclassificação do delito, houve pontos em que se verifica alguma confusão conceitual, mormente no que se trata da dita embriaguez preordenada.

Veja-se que, para fundamentar seu posicionamento, aduziu o Min. Relator: "a embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo." De fato, havendo embriaguez preordenada (quando o agente embriaga-se com o fim de praticar o delito: bebe para matar, por exemplo), é hipótese inequívoca de dolo na conduta, não se há de falar sequer na eventualidade do mesmo. Sucede que o oposto não é verdadeiro, pois não se pode afirmar categoricamente que somente a embriaguez preordenada conduz à responsabilização a título doloso. Fazê-lo é, inclusive, afastar a aplicabilidade do instituto do dolo eventual para os casos de embriaguez alcoólica, pois quando se trate de embriaguez preordenada, jamais se poderá falar em eventualidade do dolo, haja vista que a vontade do agente é diretamente dirigida para a prática do crime.

Em outras palavras, tal argumento utilizado pelo Excelso Pretório redunda na inversão absoluta dos valores, pois, ao invés de, como fazem os tribunais pátrios, presumir o dolo eventual nos casos de ocorrência do binômio crime de trânsito e embriaguez, agora, alça-se a culpa consciente à condição de regra, excepcionável somente na hipótese da ocorrência de embriaguez preordenada.

Ora, representa, portanto, um retrocesso ao estado anterior, pois, do mesmo modo, olvida-se da complexidade da questão, a qual exige um debruçar longo e detido sobre o caso concreto, e não o mero reconhecimento de uma determinada circunstância. Neste panorama, a fórmula deixa de ser: homicídio no trânsito + embriaguez = art. 121 Código Penal, transmutando-se para: homicídio no trânsito - embriaguez preordenada = art. 302 do CTB.

Tal raciocínio padece de vício congênito, pois, como se demonstrou, estas questões não são passíveis de redução a um modelo específico que resolva todos os problemas; para a busca da solução, é imprescindível a análise das circunstâncias do caso concreto, o que inviabiliza o estabelecimento de qualquer regra. É absolutamente possível que seja reconhecido o dolo eventual em homicídio praticado no trânsito por agente que esteja sob efeito de substâncias alcoólicas, mesmo que não tenha o agente ingerido tais substâncias para praticar o ato. Ou seja, a embriaguez preordenada não é requisito para que se reconheça o consentimento do autor com a ocorrência do resultado lesivo (dolo eventual).

Conclusivamente, por tudo o que se viu, em que pese tenha avançado o referido julgado no sentido de superar o reticente entendimento pela ocorrência de dolo eventual quando esteja ébrio o agente que atropela e mata outrem, retrocedeu ao absolutizar o inverso, qual seja o reconhecimento do homicídio culposo em todos os casos que não se tratem de embriaguez preordenada. Num momento anterior, não há entendimento certo ou errado. Certo é apenas que não se pode, neste caso, preestabelecer nada.

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*Gamil Föppel El Hireche e Gabriel Dalla Favera de Oliveira são integrantes do escritório Gamil Föppel Advogados Associados

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