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Greve ou golpe? Reflexão sobre o exercício justificado e adequado da força

Ricardo Gesteira Ramos e Almeida

Quando uma categoria, fundada em pretensões de melhoria das condições de trabalho, ultrapassa os limites de uma paralisação, afasta-se qualquer possibilidade de reconhecimento jurídico ou mesmo social.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Atualizado em 10 de fevereiro de 2012 15:16

Ricardo Gesteira Ramos e Almeida

Greve ou golpe? Reflexão sobre o exercício justificado e adequado da força

O recente impasse entre Governo Estadual e Policiais Militares do Estado da Bahia, que resultou na deflagração de um movimento que se insiste em chamar de "grevista", reabre a discussão sobre o próprio direito à greve, ou melhor, da greve enquanto direito.

Não creio que seja oportuno aqui se manter rédeas no (já curto) discurso, limitando a abordagem ao direito de greve de determinada categoria, no caso, os militares, ou mesmo a uma análise do que simplesmente nos é posto pelo nosso direito positivo. A via que se nos abre é mais ampla.

A paralisação de todo um Estado. A submissão de toda uma coletividade ao pânico. A propagação proposital da violência e do terror. Esses são elementos que oportunizam, certamente, - ou ao menos remetem a - uma discussão da greve enquanto direito e, em especial, da necessidade de sua legitimação por critérios de justiça. "Pois, apelando para a justiça, a própria greve remete-se a um contexto de justificação, convoca um universo de sentido que transcende a sua luta, enquanto mero jogo de forças, numa exigência de fundamento - universo, portanto, não só de poderes e força, mas de valores e validade" (A. Castanheira Neves, Considerações a propósito do direito à greve, in Digesta, v. 2, Coimbra Editora : Coimbra, 1995, p. 431)

Não que se pretenda aqui minimizar a relevância do reconhecimento, pelo direito positivo, do chamado direito à greve, mas não se pode negar que, enquanto exercício da força, enquanto poder que se exerce pelo não cumprimento de um dever (exceptio) de trabalho, a greve carrega sempre uma carga de contrariedade ao próprio direito positivo.

Tudo indica que seja essa justamente a razão para que, independentemente de vedações constitucionais ou restrições legais à realização de greve por determinadas categorias, a sociedade, de modo geral, ainda assim lhes reconheça a paralisação coletiva do trabalho com cunho reivindicatório como uma ação legítima, "justificada".

Sendo o direito, para além de uma ciência jurídica, também uma ciência social, há que se dar relevo a tal legitimidade social.

Por certo, o reconhecimento da greve enquanto direito, mais do que a simples adequação da ação a um regramento trazido pelo direito positivo, exige que a ação adotada seja justificada como meio (de força) adequado a alcançar pretensões tidas como "justas".

Ainda que em análise demasiadamente simplificada, a paralisação parcial dos serviços de uma categoria de trabalhadores que desenvolve uma atividade essencial à sociedade, expondo-se a alto risco, inadequadamente equipada e remunerada de forma desrespeitosa, parece cumprir a "exigência de fundamento" (valores e validade) suficiente a classificá-la como uma ação calcada em critérios de justiça. Se tal paralisação encontra amparo no direito positivo, - seja por permissão expressa ou por não proibição - se pode ter nela uma ação juridicamente válida. O exercício de um direito (à greve).

Nesse caso, como destaca o já citado jusfilosofo lusitano, A. Castanheira Neves, "a greve não será um direito apenas porque o direito positivo formalmente e sem mais a reconhece, e sim porque, submetida ao direito, o direito lhe confere verdadeira e material juridicidade" (A. Castanheira Neves, Considerações a propósito do direito à greve, in Digesta, v. 2, Coimbra Editora : Coimbra, 1995, p. 432)

Com efeito, mesmo na hipótese de existência de vedação expressa constante do ordenamento jurídico positivo a uma ação dessa natureza por uma categoria de trabalhadores em particular, impossível frenar-se o sentimento coletivo de reconhecimento dos motivos do exercício da via de força, suficiente até mesmo a justificar a defesa por muitos - juristas ou não - de tratar-se aí, também, do exercício de direito à greve.

Entendo, particularmente, que fugindo a uma discussão sobre o conceito de direito, que jamais poderia ser engendrada em poucas linhas, é possível ver na hipótese a conversão da "força em discurso e [d]o poder em direito. E como último, e humano resultado, a paz - não a paz instrumental e negativa de Hobbes, que é a vitória da força; mas a paz do reencontro e positiva, que é o benefício da justiça: pax opus justitiae" (A. Castanheira Neves, Considerações a propósito do direito à greve, in Digesta, v. 2, Coimbra Editora : Coimbra, 1995, p. 432)

Quando, por seu turno, essa mesma categoria, fundada em idênticas pretensões de melhoria das condições de trabalho, ultrapassa os limites de uma paralisação de atividades; levanta armas contra a população; ocupa a sede do Poder Legislativo, obstando trabalhos - em que pese que a triste realidade revele que a inoperância dos próprios membros da casa se encarregou de deixar pouco obstar; se apropria de bens de particulares para obstruir vias públicas e deliberadamente promover o caos, afasta-se qualquer possibilidade de reconhecimento jurídico ou mesmo social. Não há greve, há golpe. Não há validade, há violência. Não há direito, há apenas força e barbárie.

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* Ricardo Gesteira Ramos e Almeida é sócio do escritório Deda & Gordilho Advogados Associados, especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia e doutorando pela Universidade de Buenos Aires.

Deda & Gordilho Adv. Associados

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