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Anulação de casamento segundo o Direito Canônico

Recentemente, um amigo, fervoroso e devotado migalheiro, questionou-me sobre os temas envolvendo família, sobre os quais tenho me debruçado ultimamente, em vários artigos para Migalhas, dando relevo ele que, profissionalmente, não se trata de minha área de atuação principal.

terça-feira, 23 de agosto de 2005

Atualizado em 22 de agosto de 2005 09:28


Anulação de casamento segundo o Direito Canônico

Jayme Vita Roso*

Recentemente, um amigo, fervoroso e devotado migalheiro, questionou-me sobre os temas envolvendo família, sobre os quais tenho me debruçado ultimamente, em vários artigos para Migalhas, dando relevo ele que, profissionalmente, não se trata de minha área de atuação principal. Aprofundou o questionamento para pretender saber das razões que me levavam a cuidar desse tema e, com tom de malícia amiga, que me permiti aceitar pelos longos anos que nos conhecemos e pelo caráter do interlocutor, questionando-me das razões da ferrenha ortodoxia católica, a ver dele e da imprensa, estaria levando esvaziamento das igrejas e ao crescimento desmensurado das seitas evangélicas.

Com matreirice, não lhe respondi de plano, saindo pela via estreita de que melhor resposta seria dada após ponderada reflexão sobre tantos e tão importantes juízos a serem formulados, com base naquilo que sabia ou pretendia saber ou, ainda, iria estudar para ser mais eficiente na tentativa de convencimento.

Meu caro amigo, em nossos dias, a esmagadora maioria das pessoas esquece de considerar a Igreja Católica como uma entidade que já existe há mais de dois mil anos, tendo sobrevivido, malgrado tudo, a centenas e centenas de embates, confrontos, enfrentamentos, heresias e tudo quanto mais de adverso lhe tem passado como sociedade humana.

De outro lado, também os nossos contemporâneos esquecem de examinar a Igreja como estrutura administrativa não descentralizada, piramidal, burocrática e atenta a resguardar os seus princípios governamentais, sob a forma monárquica. Aliás, Max Weber foi pródigo em investigar esse mistério da sobrevivência inusitada da Igreja Católica, ele que foi, sem dúvida, o maior pensador das religiões, como sociólogo, a meu ver, a partir da reforma protestante e, conseqüentemente, dos estragos que ela fez na ortodoxia católica, a partir de Lutero, Calvino e Zwinglio. Por isso, a Igreja não se atemoriza, como guardiã da fé católica, em enfrentar temas que hoje são considerados desatualizados, por exemplo, união homossexual, procriação in vitro, divórcio e outros tantos modismos, que estão sendo impostos à força, e que, a meu modesto ver, desnaturam o homem das suas verdadeiras finalidades neste mundo1.

Quanto ao problema do casamento, é matéria pacífica na Igreja, que vem sendo repetida ao longo dos séculos: o casamento é indissolúvel, não significando, ao revés, que não possa ser anulado.

E é exatamente sobre a anulação do casamento, segundo o catolicismo, é que passo a responder, ou tentar fazê-lo, formulando inicialmente, algumas considerações mais do que necessárias.

1. Para a Igreja Católica, tudo começa com o casamento, que é um ato que reúne o homem e a mulher, considerados como ato sagrado. Para isso ele toma em consideração que, para ser sacramento, tanto o homem quanto a mulher devem ser dois cristãos batizados. Se nenhum ou apenas um dos personagens é batizado, então o casamento não é sacramentado como tal, mas é um ato reconhecido com alguma coisa que reúne forças ou alguma coisa que obriga sacramentalmente.

A Igreja também considera o casamento como um sacramento válido, quando um homem e uma mulher livremente expressam consentimento de afirmação sem impedimento natural ou pelo Direito Eclesiástico ou Canônico.

2. Pretendamos entender agora o casamento como sacramento. O Sacramento do Matrimônio é um perpétuo e exclusivo comprometimento entre um homem e uma mulher batizados, através do qual os dois ficam ligados e se consagram para cumprir os seus deveres matrimoniais. Deus estabeleceu esse compromisso de uma forma que o sacramento do matrimônio, uma vez consumado, somente pode ser dissolvido por Deus, através da morte de um dos parceiros. Daí o sentido da prédica do apóstolo Marcos, que hoje é considerada, melhor dizendo, desconsiderada, porque o sentido literal é muito forte, quando diz: "Aquilo que Deus juntou nenhum homem possa separar" (10,9). O mesmo em Mateus 19, 1-9, e Lucas, 16,18.

Aí temos um ponto crítico, exatamente na expressão do evangelista, "aquilo que Deus reuniu". Somente quando Deus se materializa como o divino terceiro participante na união, a partir daí essa relação verdadeiramente passa a ser um sacramento matrimonial. Deus passaria a ser, usando uma metáfora, a gota de glicerina que permite a combinação física da água com o óleo, pois, somente com esses dois, não haverá combinação perfeita.

Tomando esse exemplo como verdade, ele é a verdade do matrimônio, pois sem a glicerina (Deus), o óleo e a água do homem e da mulher nunca se tornarão efetivamente uma única "carne" (expressão do Evangelho) da obrigação resultante do casamento.

A desinformação e a má fé, ao longo desses últimos séculos, têm criado verdades quando, efetivamente, são falsidades nos seguintes pensamentos publicados, sem o menor fundamento teológico. Assim, são falsas essas afirmativas:

a. uma pessoa divorciada é automaticamente excomungada;

b. a anulação de um matrimônio torna os filhos ilegítimos;

c. somente pessoas ricas podem conseguir anular seus casamentos;

d. casamentos protestantes não são reconhecidos, porque estão fora do âmbito da Igreja;

e. a sua ex-esposa tem que concordar antes que você tente anular o casamento;

f. um casamento com filhos não pode ser anulado;

g. um caso amoroso extraconjugal já é base suficiente para pleitear a anulação do casamento, e

h. a anulação é, nada mais nada menos, do que "um divórcio católico".

3. Mas, afinal, o que é uma anulação? Anulação é a declaração expedida pela Igreja Católica, que, após cuidadosa investigação, faltas foram descobertas na relação que permitiu isso acontecer desde o início de um casamento. A anulação concerne, sobretudo, aos aspectos pessoais e espirituais do casamento. Ela, per se, não "apaga" o casamento civil e, muito menos ainda, torna os filhos ilegítimos. Ela simplesmente confirma que, após cuidadosa investigação, a Igreja decidiu que um casamento, como ela Igreja entende casamento, ser inválido.

Façamos uma pausa necessária e voltemos a insistir. Esse é o pensamento da Igreja Católica, a sua doutrina, que se aplica aos católicos cometidos em observar essa religião. Por isso, as piadas e os gracejos que se costuma ver, seja nos jornais, seja nas revistas, seja na televisão, ou na internet ou em qualquer outro meio de comunicação, feitos por não católicos, demonstram evidente má fé, mau direcionamento de caráter e indevida invasão em área que não cabe opinar aos que não sejam exclusivamente católicos. Essa regra se aplica, ao ver do escriba, também, da mesma forma e coma mesma intensidade, aos ortodoxos judeus e ao seu modo de viver e interpretar a Tora, enquanto fonte primária e básica da Tradição.

E arremato que a Igreja também reconhece razões legítimas quando o casamento possa ser considerado como não válido. Para isso, é feita cuidadosa investigação e ela chega a uma certeza moral de que um casamento não válido foi celebrado, passando a partir desse decreto, aos interessados que tiveram o casamento anulado, considerarem-se livres para casarem com qualquer outro que desejem.

E ainda outra cretinice é, que se espalha, segundo a qual, casamento entre duas pessoas não católicas é presumivelmente válido.

4. Mais uma estultice disseminada por não católicos, por pseudo católicos ou por padres ignorantes do seu ministério: o divórcio é um pecado.

Esclareçamos.

Quando os Fariseus perguntaram a Jesus se era permitido a um homem divorciar-se de sua mulher, como se vê em Marcos, 10, 11-12, ele deixou bem clara a questão do chamado repúdio da lei mosaica. Só que, porém, voltou-se ele ao ensinamento de Moisés, no começo do mundo, de que Deus fez o homem e a mulher e por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, formando, a partir de então, uma só carne. Mas o texto de Marcos é mais contundente e ao mesmo tempo apresenta-se um tanto ambíguo: "aquele que se divorcia de sua mulher e casa com outra comete adultério contra ela e se ela se divorcia de seu marido e casa outra vez, ela comete adultério". Por causa disso, muitas pessoas passaram a, irrefletidamente, imaginar que o divórcio, por ele mesmo, é um pecado e, mais grave ainda, ele conduz a uma excomunhão automática. Fato é que católicos divorciados que não tornarem a se casar permanecem em condições adequadas com a Igreja, não sendo excomungados. Todavia, pessoas que se divorciaram e voltaram a casar-se, sem, todavia, fazer anulação do casamento anterior, a não ser que eles, os que erraram, não se permite receber a comunhão, exceto se concordarem em viver como irmã e irmão. Todavia, ainda, não obstante tudo, eles são incitados ou encorajados a se considerarem católicos, permanecerem na Igreja, participarem da Santa Missa e educarem seus filhos na Fé.

5. Tanto quanto possível, dissipadas ou extirpadas dúvidas, mal entendidos ou objeções infundadas, passemos a considerar os degraus que são percorridos para a anulação.

Um casamento pode ser declarado inválido por várias razões e motivos, referentes às suficientes habilidades para um ou outro dos participantes não só compreender como também concordar com o entendimento católico de casamento antes que se realize a cerimônia matrimonial. Adianto algumas das razões mais freqüentes.

5.1. A existência de um impedimento particular como o prévio casamento ou votos religiosos ou uma estreita relação de sangue entre o casal (um irmão e uma irmã ou primos em primeiro grau). Alguns desses impedimentos podem ser dispensados, desde que não seja casamento de irmão com irmã.

5.2. A incapacidade psicológica na época do casamento, sobretudo para assumir os compromissos referentes a esse estado (por exemplo, se um dos partícipes sofre de uma doença mental séria, que o impeça de assumir as responsabilidades de pai ou de esposo).

5.3. A presença, na época do casamento, de uma deliberada intenção contrária ao casamento a alguma coisa essencial ao casamento (por exemplo, um dos esposos recusa a procriação, não pretende permanecer fiel ao outro ou já de antemão acredita na possibilidade de futuro divórcio).

5.4. A existência de uma pré-condição para casar (por exemplo, que um dos nubentes peça ao outro que, num certo tempo, consiga atingir uma determinada condição econômica, através da geração de renda).

5.5. Imaturidade psicológica que não permite a um ou aos dois nubentes entender a verdadeira natureza do casamento na época em que se realiza (por exemplo, quando um casal adolescente, que embora se conheça mutuamente apenas decidem se casar porque a mulher está grávida. Nessa hipótese eles não têm suficiente entendimento de que no futuro terão que se suportar e apoiar-se um ao outro no casamento e nem se conhecem de forma suficiente para fazer um compromisso que perdure pela vida).

6. Há uma processualística que regulamenta a anulação do casamento, isso quando todas as esperanças de salvá-lo foram esgotadas e, nesse caso, pode-se pretendê-lo. Nos Estados Unidos, como exemplo, muitos tribunais eclesiásticos exigem que seja feito, em primeiro lugar, o divórcio no civil antes de se analisar o pedido de anulação propriamente dito.

Muitas pessoas aguardam até que comece a se preparar para o segundo casamento para dar início ao processo de anulação, mas a jurisprudência eclesiástica tem considerado que é preferível, em primeiro lugar, obter uma anulação antes de começar, inclusive, qualquer relação.

6.1. Primeiramente, é aconselhado que o interessado ou os interessados consultem o seu pároco, presumindo-se que sejam católicos praticantes, pois ele poderá dirigir ou indicar os meios necessários para o início de preparo do processo.

6.2. Ainda que o processo possa variar levemente na forma de diocese para diocese ao pretender a anulação ser-lhe-á solicitado que adiante todos os detalhes ou ao padre ou ao tribunal de casamento, a respeito da sua residência, compromisso de casamento e a quebra da relação ou falha que resulte na pretensão de acabar com a relação. Qualquer um dos esposos pode iniciar o processo, mas, majoritariamente, ambos serão solicitados a testemunhar. A propósito, ser-lhes-á pedido que indiquem nome de uma ou mais testemunhas para que seus depoimentos sejam tomados e confirmados. Antigamente, o processo de anulação ainda poderia continuar mesmo sem que as testemunhas fossem encontradas uma vez que poderia ter ocorrido que o casamento se realizara muitos anos atrás e as testemunhas já teriam falecido. Hoje isso será mais difícil, pela sucessão de casos que não adotam essa sistemática.

6.3. O pedido é feito através de uma petição regular, escrita, que deve conter os requisitos necessários, para que o caso possa ser submetido ao tribunal, que, a partir de então, procedida a instrução, será decidido por um grupo de juízes que usualmente são conhecedores do direito canônico e, sobretudo, do casamento não só enquanto instituição sacramental como também relacionamento entre duas pessoas de sexo oposto. Esse processo pode demandar alguns meses e até anos, na dependência das provas que serão solicitadas e que serão reproduzidas na instrução.

6.4. Normalmente, quando se começa processo de anulação, são solicitados pagamentos de custas administrativas, para manutenção da Corte eclesiástica. Isso não será impedimento para revisar a validade do casamento católico, porque é direito de qualquer católico assim o pleitear. Fique entendido que os problemas financeiros para exercício do direito não são condição para obstaculizar que ele seja exercitado e, na maioria dos casos, a própria Diocese oferece garantias, há opções de pagamento e até, em último caso, assistência financeira.

6.5. Dois fatos ainda são importantes de serem abordados: o primeiro, é que na Corte eclesiástica, sempre existe um defensor do vínculo, representando a Igreja, que o defende; o segundo, é que em cada Diocese há Cortes que decidem matéria de Direito Canônico.

7. Bom, meu caro amigo migalheiro, você vê, percebe e sente quanta desinformação existe na sociedade a respeito desse tema tão importante que é a anulação de casamento de católicos. Repito: de católicos. Se você pretender avançar seus estudos nesse importante tema, que dá uma perspectiva muito interessante sobre a questão, vista exclusivamente do ângulo de católicos e para católicos, poderá consultar as indicações abaixo e, quem sabe, depois de fazer um curso de Direito Canônico, que existe na cidade de São Paulo, muito bem estruturado, de nível pós-universitário, e tornar-se também um dos operadores do direito nessa área que não só abrange anulação de casamento.
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Notas

1 Carlos Alberto Fernandes, Diretor Geral da mais completa revista brasileira, Continente Multicultural, editada em Recife, escreveu valioso artigo, publicado no mês de maio (ano V, nº 53), com o título "O poder da burocracia: os mortais não tomam decisões que querem, mas as decisões que podem". Nele, escorado por Max Weber, colocou a questão de forma definitiva para o escriba: "Do alto dos seus dois mil anos de história, a Igreja ultrapassou todas as crises. Sobreviveu a todas as guerras. Foi perseguida e ainda, em alguns países, sofre perseguições. Silenciou quando era esperado o seu grito. Foi poder real e espiritual. Cometeu também grandes pecados - o próprio Papa João Paulo II os reconheceu e pediu perdão pelos erros cometidos. Não obstante, mantém-se viva, em função de uma invejável estrutura burocrática que preserva os valores herdados por séculos. Sua estrutura de poder e sobrevivência é tão marcante que foi objeto de inspiração de Max Weber como paradigma para a formulação do arquétipo de racionalidade do modelo burocrático, hoje adotado nas organizações do mundo inteiro". E, ainda, "Com a eleição do Cardeal Ratzinger, a estrutura burocrática da Igreja, com o seu poder institucional, consolida-se como depositária de atos e fatos - que preservam os valores do passado - e de estratégias que proporcionam através da fé os caminhos do futuro. É assim que mantém o seu poder por todos os séculos dos séculos. Amém".

Bibliografia

A - Théo: L'encyclopédie catholique pour tous. Paris: Éditions Droguet-Ardant/Fayard , 1992.

1. Nulidade do casamento, p. 561a e 561c; 978b e 979.

2. Nulidade do casamento (custo de uma sentença), p. 979c.

3. Nulidade do casamento (número e natureza das causas: tabela), p. 1040b e 1040c.

4. Nulidade do casamento: processo, motivos e números, p. 979a e 979b.

B - Código de Direito Canônico. 11ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983. Matrimônio.

1. Conceitos, fins e sacramentalidades: art. 1055

2. Propriedades essenciais: art. 1056

3. Consentimento: art. 1057 (consentimento matrimonial: art.1057, § 2º; efeito: art. 1057, § 1º; incapacidades: art. 1095; vícios: art. 1096 ao art. 1101 e 1103; condicionado: art. 1102; manifestação: art. 1104; por meio de procurador: art. 1105; por meio de intérprete: art. 1106; perseverança: art.1107; proibição de duplicação: art. 1127, § 3º; renovação de convalidação simples: art. 1156 ao art. 1159 e na sanatio in radice: art. 1161 ao art. 1163.

4. Ratificado, consumado, putativo: art. 1061.

5. Promessa: art. 1062.

6. Nulidade - consciência: art. 1061, § 3º.

7. Impedimento de vínculo: art. 1085, § 2º; certeza ou opinião dela: art. 1100.

8. Sanação radical: art. 1165, § 2º; defensor do vínculo: art. 1462; processo de declaração: art. 1661 ao art. 1669; capacidade para acusar: art. 1664; não consumação: art. 1681 e 1700. § 2º; apelação da sentença que a declarou: art. 1682; conseqüência da declaração: art. 1684, § 1º e § 2º; notificação ao ordinário: art. 1684, § 2º.

C - Catéchisme de l'Église Catholique. Paris: Mame-Librairie Editrice Vaticane, 1992.

1. Matrimônio. p. 372, 1113, 1210, 1534, 1601, 2101, 2201, 2225, 2333, 2350, 2360 e. 2685.

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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos















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