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A atuação do Poder Judiciário

A nossa Justiça vem claudicando por força do velho hábito de se priorizar apenas o recrutamento de juízes cada vez mais preparados tecnicamente, sem se preocupar com o aspecto vocacional.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Atualizado em 23 de maio de 2012 10:17

Nunca a imagem do Poder Judiciário esteve tão ruim quanto no momento atual.

Não bastasse o estigma da morosidade que o persegue de há muito tempo, ainda não revertido com a introdução do princípio da razoável duração do processo, por meio da EC 45/04, ultimamente, o Poder Judiciário vem sendo duramente fustigado pela mídia, após denúncias feitas pela Corregedoria Nacional de Justiça.

A judicialização da política e a politização do Judiciário, também, são críticas que vem aflorando com intensidade cada vez maior.

No nosso modo de ver o Judiciário vem falhando, e a olhos vistos, em sua missão constitucional de tornar efetiva a jurisdição.

De nada adiantam as estatísticas publicadas dando conta da quantidade de decisões proferidas. É preciso que essas decisões tenham resolvido o mérito das questões reclamadas, isto é, que tenham entregado a devida prestação jurisdicional, já que o Poder Judiciário detém o monopólio da jurisdição. Não basta apenar quem procura a Justiça, cara por sinal, com a extinção do processo sem exame do mérito sob vários argumentos inconvincentes, o que é pior, muitas vezes, após concluída a instrução da causa.

Há uma falha estrutural e funcional muito grande.

Tribunais estaduais estão com estruturas inadequadas e inoperantes. Dizem que há falta de recursos financeiros para contratação de servidores e aumento do quadro de magistrados. Só que, ao que saibamos, os recursos financeiros existentes não estão sendo otimizados.

Há, também, uma gritante falha funcional. Aumentar o número de juízes, por si só, não é a solução para o problema que vivemos.

É preciso implantar no seio da magistratura uma nova cultura: a de fazer justiça, tornando efetiva a jurisdição privilegiando o direito material, limitando o uso de normas processuais ao mínimo imprescindível para a consecução do processo. O processo civil nunca pode ser considerado como um fim em si mesmo. Se o juiz vislumbrou a existência do direito material não deve ficar buscando regras processuais para a extinção do processo sem exame do mérito, pois isso não representa prestação jurisdicional e, por isso mesmo, aquela demanda vai ser reproduzida em outro processo, concorrendo para o congestionamento do Poder Judiciário.

A dualidade da Justiça, uma estadual e outra federal, também concorre para o encarecimento do Poder Judiciário como um todo e para o retardamento na prestação jurisdicional, por provocar desnecessários conflitos de competência conduzindo, às vezes, à prescrição da ação.

Mas, o pior defeito da magistratura está na falta de vocação dos juízes para essa atividade de distribuir a justiça.

Temos, na verdade, um quadro composto por magistrados de alto saber jurídico, muitos deles com titulações acadêmicas de mestre ou de doutor, mesmo porque parcela ponderável deles exerce o magistério superior. São profundos conhecedores do Direito, mas não estão vocacionados para a missão de compor a lide pelo exame do mérito envolvendo, na maioria dos casos, questões de simples solução.

Realmente, na esmagadora maioria dos casos submetidos à apreciação do Judiciário, ou são questões repetitivas, ou então são questões que não se exige conhecimentos técnicos aprofundados, mas simples experiência de vida e uma boa dose de bom-senso. Dizia Cícero, na antiga Roma, que Direito é arte do bom-senso, o que é uma verdade incontestável.

Nada justifica uma sentença de inúmeras laudas para uma simples ação de despejo por falta de pagamento, por exemplo, tecendo extensas considerações de natureza acadêmica. Às vezes, o excesso de conhecimento técnico do juiz acaba atrapalhando, e bastante, a rápida solução da lide por fazer abordagens desnecessárias que servem para municiar a parte vencida com argumentos dispersivos para recorrer atirando para todos os lados.

O bom juiz deve ter muita experiência de vida e bastante sensibilidade jurídica. Detectada a existência do direito material, deverá promover, de forma sucinta, a efetivação desse direito, sem maiores preocupações com o aspecto processual, que é mero instrumento para a efetivação da jurisdição. O processo outra coisa não é senão mero instrumento de que se serve o Estado na sua função jurisdicional para aplicar a lei ao caso concreto, concedendo a cada um o que é seu.

Experiência de vida, bom-senso e sensibilidade jurídica resolvem rapidamente a maior parte dos conflitos levados à Justiça, ao contrário de conhecimentos técnicos aprofundados que tendem a transformar o processo judicial em instrumento de debate de questões acadêmicas, o que é pior, priorizando as normas processuais que mudam com incrível rapidez, conspirando contra o princípio da segurança jurídica.

Temos um Judiciário desvirtuado de suas funções jurisdicionais. Mais parece um órgão estatal vocacionado para ensinar às partes litigantes a forma de postular a prestação jurisdicional. O meio é mais importante que o fim. É óbvio que é mais fácil e cômodo resolver processualmente a questão posta em juízo do que pelo exame de seu mérito, que envolve exame não apenas do direito, como também a o exame da comprovação da situação fática alegada.

Tivemos um caso recentemente de uma ação cautelar inominada para obter a certidão positiva com efeito de negativa, mediante caução de bens móveis e imóveis, ajuizada no interregno entre a inscrição do débito na dívida ativa e a propositura da execução fiscal que, por sinal, até hoje não aconteceu. Essa omissão, é claro, constitui instrumento de coação indireta para evitar o contraditório e a ampla defesa na cobrança de tributos indevidos. Simples raciocínio lógico conduz a isso.

A inicial comprovou documentalmente que a requerente atua exclusivamente no setor de execução de obras públicas e que vem perdendo todas as oportunidades de participar de novos certames licitatórios, bem como que não vem conseguindo receber as medições já realizadas por ausência de certidão. A propriedade dos bens oferecidos, bem como os seus valores foram documentalmente comprovados. Enfim, a inicial foi lastreada em prova pré-constituída, como se tratasse de um mandado de segurança. Era de se esperar o uso do poder cautelar do juiz ínsito na noção de jurisdição, para evitar o perecimento do direito.

Porém, para a nossa grande surpresa, o ilustre juiz federal de primeira instância proferiu despacho laudatório deferindo parcialmente a liminar, porém, submetendo a expedição da certidão requerida ao prévio pronunciamento da Fazenda numa demonstração de excessiva preocupação com o erário público, não bastasse a proteção que a lei já dispensa. É óbvio que a Fazenda não iria concordar com o pedido de liminar, colocando em xeque a sua estratégia de coação indireta para cobrar o indevido.

A falta de conhecimento da realidade e da sensibilidade desse douto magistrado, provavelmente muito jovem, abrindo mão do poder cautelar de que dispõe, acabou por condenar a empresa requerente à extinção. Sem novas obras a serem executadas e sem poder receber pelas obras já executadas, pergunta-se, como continuar pagando os salários, os tributos e as demais despesas contínuas? Talvez um leigo pudesse compreender e avaliar melhor essa situação que, de um lado, está em jogo a sobrevivência da empresa e das pessoas que dela dependem, e de outro lado, a Fazenda que em nada poderia ser prejudicada com a determinação de expedir a certidão que tem caráter temporário e que não tem o condão de alterar o crédito tributário, o qual já deveria estar sendo cobrado judicialmente.

Esse tipo de decisão denegatória da justiça equivale ao decreto de falência da empresa sem observância da lei de regência da matéria.

Esse é apenas um pequeno exemplo de como a nossa Justiça vem claudicando por força do velho hábito de se priorizar apenas o recrutamento de juízes cada vez mais preparados tecnicamente, sem se preocupar com o aspecto vocacional. Sempre tenho dito que o processo judicial não é local apropriado para a demonstração de erudição do prolator da sentença, mesmo porque a massificação da justiça está a exigir decisões simples, rápidas e objetivas para compor a lide com a maior brevidade possível, a fim de que a morosidade deixe de ser a grande causa de demandas protelatórias.

Nesse sentido, as faculdades de Direito, em geral, e as Escolas da Magistratura, em especial devem redirecionar os ensinamentos para que as aulas deixem de priorizar os conhecimentos técnicos. É preciso atenuar a cultura legalista, principalmente aquela voltada para o plano processual e enfatizar a busca da legitimidade de atuação do Judiciário na soberania popular, à medida que todo o poder emana do povo. O que não pode, nem deve é a excessiva valorização do aspecto processual como que punindo aquele que bate as portas do Judiciário para a preservação ou efetivação de seu direito.

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* Kiyoshi Harada é jurista, professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, sócio do escritório Harada Advogados Associados, ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Harada Advogados Associados

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