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Gastar a Sorte

Na feira tudo se vê, sente, percebe, escuta. E se gasta. Até a sorte ? Veja a bem-humorada crônica.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Atualizado em 6 de julho de 2012 13:45

O dia lá fora ainda nem começou com direito aos seus burburinhos, mas aqui dentro já tem filas. Passeio o olhar nas verduras, quiabos, maxixes.

Passeio o olfato nos maços das ervas, alecrim, manjericão, hortelã. O verde ainda se encomprida nas cebolinhas, coentro, rúcula, agrião, alfaces.

Tem mangas aqui que de tão cheirosas nem dá vontade de comê-las. Melhor, talvez, fosse só cheirá-las, cheirá-las, ate fungar como se elas, as mangas, tivessem cangotes.

Na melancia partida ao meio prepondera uma cor rosa, e as flores, sim, há um espaço só para as flores, e elas se chamam rosas, umas vermelhas em dois tons, outras amarelas, algumas brancas.

Lembro-me de D. Violeta, irmã da Flor de Lis, mãe da Gardênia, na Rua da Paz, toda feliz segurando um cabo de vassoura como se fosse um microfone e cantando rosas vermelhas para uma dama triste, eu vou mandar rosas para alguém.

Passa uma mulher em seus saltos altos, toda arrumada e espalhando um perfume forte como quem não tem mais tempo a perder a caminho do trabalho, ela deve ser uma dona de casa, empurrando celeremente o carrinho e eu me espanto com a rapidez com que ela feliz recolhe as cebolas, as batatas, as cenouras, o pacotinho de alho.

Gosto de ficar assim, olhando os estoques, passeando o olhar anônimo no anonimato dos outros, vendo as pessoas simples, bem humanas no amanhecer.

No supermercado mais do que na feira as pessoas atuam com a sinceridade adequada a cada necessidade.

O homem elegante em seu blazer estilo inglês entra na fila do caixa eletrônico e parece bem confortável em sua cadeira de rodas.

Ficará dependente daquela cadeira por algum tempo ou precisará daquele apoio para todo o sempre?

Como se o meu olhar fosse uma câmera de TV desloco-o rápido para o restante do mundo nas pernas que passam. Aí, como se descobrisse uma grande novidade, me dou conta de como é bom poder andar com as próprias pernas.

Como é bom poder alcançar as coisas com os próprios braços, pegá-las com as próprias mãos, tocá-las com os próprios dedos, olhá-las bem de perto com os próprios olhos.

E estando com isso tudo funcionando normalmente ainda nos gastamos em reclamações ou resmungos por causas ou coisas menores.

Como é bom poder sentir o aroma das flores, das ervas, enxergar nítida a gota d'agua que desliza como se fosse lágrima de alegria sobre a pele escura da berinjela.

Como é bom ter amigos de verdade, saber que se pode contar com eles na precisão do conselho, na alegria da confraternização sincera, naquela solidariedade de quando a gente tem a certeza de que nunca estará só.

Ah como é bom amar e ser amado, ter uma família em que todos se apoiam e se orgulham uns dos outros, sem ninguém a nos envergonhar.

É bom amanhecer assim vendo as pessoas em movimento, encenando essas rotinas em que nos gastamos felizes, sem culpas, sem traumas.

Agora, na saída, me aparece aquele vendedor loteria que está sempre a oferecer o bilhete premiado. Ele me mostra um bilhete com o numero exato da placa do meu carro.

Obrigado, amigo. Vai que eu ganho e aí terei gasto a minha sorte, obrigado!

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*Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA






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