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Do suicídio, necessidade de revogação das Súmulas 105 do STF e 61 do STJ

Ana Rita R. Petraroli e Angélica Luciá Carlini

"(...) Estava imaginando, hoje ainda estava pensando, qual seria a saída, sem ofender a lei, porque a jurisprudência tem que se construir com base na lei, e não à margem da lei. Nós não podemos construir jurisprudência contra legem." Ministro Sebastião de Oliveira Castro Filho

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Atualizado em 14 de setembro de 2010 14:23


Do suicídio, necessidade de revogação das Súmulas 105 do STF e 61 do STJ

Ana Rita R. Petraroli*

Angélica Luciá Carlini**

"(...) Estava imaginando, hoje ainda estava pensando, qual seria a saída, sem ofender a lei, porque a jurisprudência tem que se construir com base na lei, e não à margem da lei. Nós não podemos construir jurisprudência contra legem." Ministro Sebastião de Oliveira Castro Filho1

Nunca nossa sociedade viveu um momento de tantos riscos e de tantas incertezas. O próprio planeta tem demonstrado que viver é um risco por vezes imensurável. As mudanças climáticas, o excesso ou a escassez de chuva. O calor extenuante e o frio absoluto. Contrastes no nosso dia-a-dia que nos fazem refletir sobre tudo, inclusive nossas relações pessoais e sociais.

Em contrapartida e talvez pela mesma razão, os riscos da sociedade atual crescem em número, multiplicam-se em formas e inovam-se quanto aos tipos.

Cláudio Prado do Amaral2, nos ensina:

"A sociedade está caracterizada por ameaças que não se limitam a calamidades naturais ou doenças epidêmicas. Os perigos existentes na sociedade contemporânea não são produtos exclusivos dos 'desvios' da natureza, mas também gerados pela atividade humana. Ademais, são perigos vinculados a uma decisão tomada por um indivíduo ou um grupo de indivíduos".

E Beck3 já havia nos alertado que riscos "são formas sistemáticas de lidar com os perigos e as inseguranças induzidas e introduzidas pelo próprio processo de modernização."

Somos, portanto, uma sociedade que incorporou as múltiplas formas de risco à sua forma de viver e de se organizar.

A busca pela igualdade, pelo direito assegurado, pela justiça, pelos princípios, ao menos em discurso, se expandiu após a Constituição Federal de 1988. É um clamor igual que surge dos mais diferentes círculos sociais. Julgamentos polêmicos se tornam parte da conversa em mesas de bar, no almoço do domingo e até na roda de amigos. O direito ao voto. O combate a toda forma de censura. A liberdade da imprensa. As sumulas vinculantes...

As súmulas vinculantes se incorporaram ao direito moderno, que deseja ser célere e eficaz e para isso conta com elas. Na estrutura judicial brasileira com hierarquia clara entre os Tribunais, com a positiva e necessária permissividade recursal prevista na lei, não há como pensar em direito sem as sumulas.

As súmulas vinculantes na esteira do que já fizera a própria jurisprudência produzida pelos Tribunais, exercem marcante influência sobre os juízes singulares e mesmo sobre outros tribunais. Os juízes das comarcas, dos foros regionais, mesmo os das grandes metrópoles, buscam na jurisprudência dos Tribunais Superiores a inspiração para subsidiar suas decisões, mantendo, desse modo alguma harmonia quanto as respostas as demandas.

Ocorre que em razão da falta de celeridade na primeira instancia e nos tribunais estaduais as matérias que os Tribunais Superiores apreciam hoje estão atrasadas em relação à realidade. Processos de mais de 10 anos não são exceção, nem minoria em Brasília. Dessa maneira, grande parte das decisões das instancias inferiores são proferidas sem qualquer referencia dos Tribunais Superiores e este fato, assim permanece, por muitos anos.

A falta de celeridade dos tribunais e das instâncias primárias não é, frise-se desde logo, resultado do grande número de recursos que pode ser interpostos, como tem sido propagado por muitos juristas. Ao contrário, antes de discutir essa característica essencial do devido processo legal e do direito ao contraditório como nociva para a celeridade dos processos, é preciso ter coragem de discutir a falta de formação adequada dos funcionários do judiciário, a ausência de instalações adequadas nos fóruns e tribunais, a remuneração injusta dos funcionários, a falta de planos de carreira, entre outras razões que contribuem muito mais para o atraso no julgamento dos processos do que a interposição de recursos.

Ao colocarmos em linhas paralelas as sumulas e as necessidades de jurisprudência superior pelos Tribunais inferiores, constatamos o tamanho da deficiência, porque as sumulas que existem muitas vezes descabem e, em alguns casos, chegam a estar revogadas pela legislação em vigor.

Essa situação é exatamente a que ocorre com o artigo 798 do Código Civil de 2002. Determina o artigo:

"Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente. (grifamos)
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado."

Uma lei somente pode emergir para trazer paz social, dissolver conflitos, amenizar os ânimos.

Qualquer lei que vise acirrar confrontos deixa de cumprir seu papel mais efetivo. Inimaginável que o legislador perca anos na elaboração de uma lei, décadas como no caso do novo Código, com a intenção de perpetuar uma discussão ou um conflito.

Isso não significa necessariamente que toda lei é boa, mas sim, que todo movimento legislativo é no sentido de regular divergências, para criar um ponto de encontro e pacificar as relações conflituosas da sociedade.

No caso dos pagamentos securitários que envolvam o suicídio do segurado, iniciou-se há muito (o acórdão mais antigo que encontrado nesta pesquisa data de 1952 e já continha essa discussão...), a controvérsia acerca da cobertura indenitária ao beneficiário no caso de suicídio do segurado. Vale passar os olhos pelas datas e palavras proferidas há mais de meio século:

RE 16414 / RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. BARROS BARRETO
Julgamento: 16/04/1951
Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA

Publicação

ADJ DATA 13-08-1954 PP-03042 ADJ DATA 22-12-1952 PP-05652
ADJ DATA 26-09-1951 PP-02968 EMENT VOL-00037 PP-00128

Ementa

SEGURO DE VIDA. SUICIDIO INVOLUNTARIO. PERIODO DE CARÊNCIA. EXAME DAS CLAUSULAS CONTRATUAIS E INTELIGENCIA DA LEI. APOLICE DE SEGURO DE VIDA. PERIODO DE CARÊNCIA. SUICIDIO INVOLUNTARIO. A CLÁUSULA CONTRATUAL IMPUGNADA NÃO SE HARMONIZA COM OS ARTS. 1.435 E 1.440, PARAGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. INTELIGENCIA DO ART. 178, PARAGRAFO 6., N. II, DO CITADO DIPLOMA. JURISPRUDÊNCIA.

Indexação

SEGURO DE VIDA.
DIR. CIVIL
"S"

Observação

DOCUMENTO INCLUIDO SEM REVISÃO DO STF
ANO:** AUD:09-05-1951

fim do documento

Colocando de lado a paixão que o assunto provoca nas questões mais controvertidas: problemas sociais, incitação ou incentivo ao suicídio contratação de seguro seguido do cometimento de suicídio para paga de dividas, pagamento de perdas em jogos de azar ou de débitos que envolvam entorpecentes, ...e mantendo o foco nas questões de fato dúbias, ou seja, aquelas em que se discute a premeditação ou não do suicídio, encontramos duas sumulas, uma editada pelo STF de número 105 e outra do STJ sob o número 61 que na literalidade contém:

Súmula 105 do STF: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro."

Súmula 61 do STJ: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado."

Ambas baseavam-se no artigo 1440 do código civil de 1916:

Art. 1.440: A vida e as faculdades humanas também se podem estimar como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possíveis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros semelhantes.

§ 1º: Considera-se morte voluntária a recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo". (grifamos)

Assim, como este era o panorama pretérito tinha-se na previsão legal a exclusão da morte voluntária daquelas acobertadas pelas apólices de seguro, deixando claro o legislador que os casos de suicídio premeditado por pessoa em seu juízo, não seriam indenizados pelas seguradoras, porque qualificados como morte voluntária, sendo incontroverso que voluntariedade no resultado é um dos elementos aniquiladores de qualquer contrato securitário, porque este sempre deve estar fundamentado na ausência por parte do segurado de desejo quanto ao resultado. Só é seguro se segurado e seguradora não desejam que o risco se materialize.

Desse nascedouro vieram centenas de decisões, mães das sumulas acima, pacificando o entendimento que suicídios premeditados, ou seja, aquele provocado conscientemente por pessoa capaz, não seriam indenizados. Muitos magistrados exigiam que as seguradoras comprovassem que a contratação do seguro se deu visando o suicídio.

Em que pese a enorme dificuldade em comprovar ato eivado de subjetividade humana, a tendência era de exclusão de pagamento quando comprovada a intencionalidade. Nos demais casos, o pagamento da indenização deveria ser realizado.

Entretanto a solução não agradava nem a consumidores, nem a julgadores e aos seguradores, pois, como afirmamos, estava fundada na subjetividade.

Sem qualquer critério mais objetivo o julgador acabava decidindo pelo pagamento, em absoluto desrespeito a mútua, sem aceitar provas muito menos as indiciárias, apresentadas em defesa dos interesses da mútua e apresentadas pelo segurador.

Esse problema não era exclusivo de nossos Tribunais e a legislação alienígena, em especial a Italiana foi a primeira a adotar não somente para estes casos mas para tantos outros, um critério mais objetivo, o critério temporal, estabelecendo em vários casos carências de cobertura.

Assim, as cortes italianas estipularam:

"Suicidio dell'assicurato - In caso di suicidio dell'assicurato prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione del contratto, o dalla sua riattivazione dopo la sospensione seguita al mancato pagamento dei premi, l'assicuratore, salvo patto contrario, non è tenuto ad erogare le prestazioni stabilite."

Esse mesmo modelo veio a ser adotado pelo legislador brasileiro que também substituiu o critério subjetivo pelo critério temporal.

Com isso, ficou encerrada a discussão inglória acerca da causa do suicídio para de maneira pratica fixar uma carência de cobertura o caso de a morte ocorrer nos dois primeiros anos do contrato. Com isso ficou afastada a discussão sobre a premeditação ou não do suicídio. Ficou afastada de forma definitiva qualquer especulação de voluntariedade, restando apenas o critério temporal.

O que deve ser observado é apenas a linha do tempo, que se inicia na contratação ou recondução do contrato e finda com o ato suicida. Se passados dois anos, a indenização é devida sem ensejar qualquer outra discussão.

Talvez a simplicidade do conceito assuste àqueles que preferem as teses jurídicas mais sofisticadas ou complexas, mas a estipulação de lapsos temporais é velha conhecida daqueles que defendem a segurança jurídica, porque através de um conceito uno para qualquer julgador, o tempo, fica afastada toda injustiça que pode derivar do critério do relativo, do abstrato, do abismo, da carga emocional daquele que julga. Resta ao Julgador o uso do calendário. Basta ao julgador a contagem dos dias, não lhe sendo repassada a enorme responsabilidade de opinar, adivinhar, submeter a sua percepção ao fato acontecido, quase sempre sem provas. Se tão simples, porque a resistência?

No caso especifico do artigo 798 contrariar o texto de lei, que está claro e muito bem organizado, é agredir a inteligência coletiva, menosprezar a sociedade, provocar o que de mais mesquinho existe no ser humano: o poder incontrolável.

O artigo 798 comporta interpretação literal, sistemática e histórica. Literal porque a simples leitura permite a compreensão, sistemática porque é se adéqua aos princípios de boa-fé e veracidade previstos para os contratos de seguro e, histórica, porque é possível identificar desde logo qual conflito o legislador pretendeu solucionar quando modificou a premissa dos suicídios, estipulando um prazo para que sejam reconhecidos como passíveis de indenização.

Não cabe ao julgador dar a interpretação que deseja, mas aquela que se compatibiliza com a segurança social e jurídica. Assim, se não há dúvida de que a lei do NCC revogou a legislação anterior, o que dizer da jurisprudência formada sob a égide da lei revogada? Sobre ela, a jurisprudência, também deve soprar a brisa da mudança, o vento da modernidade, o novo ar que refresca o direito antigo.

É neste sentido a manifestação de José Figueiredo Alves:

"Agora, porém, a lei veio a estabelecer um limite temporal, como condição para pagamento do capital segurado, ao afirmar, categoricamente, que somente após dois anos da vigência inicial do contrato é que o beneficiário poderá reclamar o seguro devido em razão de suicídio do segurado. A rigor, é irrelevante, doravante, tenha sido, ou não, o suicídio premeditado, pois a única restrição trazida pelo NCC é de ordem temporal. A norma, ao introduzir lapso temporal no efeito da cobertura securitária em caso de suicídio do segurado, recepciona a doutrina italiana, onde o prazo de carência especial é referido como spatio deliberandi. Esse prazo de inseguração protege o caráter aleatório do contrato, diante de eventual propósito de o segurado suicidar-se. Portanto, depois de passados dois anos da celebração do contrato, se vier o segurado a suicidar-se, poderá o beneficiário, independentemente de qualquer comprovação quanto à voluntariedade, ou não, do ato suicida praticado, reclamar a obrigação. Observa-se que o preceito veio em abono à pessoa do beneficiário, em detrimento das companhias seguradoras, que, amiúde, se valiam de eventuais suicídios para se desonerarem da obrigação, ao argumento de que teria sido premeditado o evento." (Novo Código Civil Comentado - Coordenação Ricardo Fiúza, 1ª ed., Ed. Saraiva, p. 723)

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu que:

APELAÇÃO - AÇÃO ORDINÁRIA - SEGURO DE VIDA - SUICÍDIO DO SEGURADO - MENOS DE 2 ANOS APÓS INÍCIO DA VIGÊNCIA DO CONTRATO - INDENIZAÇÃO INDEVIDA - INTELIGÊNCIA DO ART. 798, DO CC. DE 2002 - RECURSO IMPROVIDO. Pela inteligência do art. 798, do C.C. de 2002, que exigiu o tempo como única restrição ao pagamento do seguro, a seguradora está isenta do pagamento da indenização se ocorrer suicídio do segurado dentro de 2 anos após o início da vigência do contrato, sendo irrelevante o SUICÍDIO ser ou não premeditado. (TJMG, Ap. Cível ..... , Rel. Des. Marcelo Rodrigues, 14/02/07)

CIVIL - SEGURO DE VIDA - SUICÍDIO - ART. 798 DO CÓDIGO CIVIL - CRITÉRIO OBJETIVO - AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR- O entendimento jurisprudencial pátrio anteriormente à vigência do novo Código Civil firmou-se no sentido de que cabia às seguradoras comprovar que o suicídio seria premeditado, para que pudessem deixar de pagar a indenização securitária decorrente desta espécie de morte, pois o suicídio não premeditado se equipararia ao acidente, tendo o beneficiário do seguro o direito de receber a indenização correspondente à morte acidental.- A partir da vigência do novo Código Civil esta controvérsia já não mais se sustenta, haja vista a adoção de critério objetivo no próprio texto do seu art. 798 para a exclusão do risco da seguradora para suicídios ocorridos nos dois primeiros anos da contratação. (TJMG, Ap. Cível ..... , Rel. Des. Nilo Lacerda, 17/10/07)

O Tribunal de Justiça do Paraná:

AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE VIDA EM GRUPO - SUICÍDIO DO SEGURADO - CONTRATO FIRMADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - SUICÍDIO COMETIDO DENTRO DO LAPSO TEMPORAL DE DOIS ANOS DE VIGÊNCIA DO SEGURO - INCIDÊNCIA DO ART. 798 DO CCB/2002 - BENEFICIÁRIOS QUE NÃO TÊM DIREITO AO RECEBIMENTO DA INDENIZAÇÃO - NORMA COGENTE E INAFASTÁVEL - SENTENÇA REFORMADA. A nova disciplina dos contratos de seguro trazida pelo Código Civil de 2002 deve, sim, ser aplicada em consonância com os princípios e com as normas do CDC, para que se evitem abusos, mas isso não significa que possa o direito consumerista ser deturpado a fim de aniquilar artigo de lei também de finalidade pública e fito garantidor. RECURSO PROVIDO." (TJPR, 9ª Câm. Cív., Ac. 9155, Rel. Des. Eugenio Achille Grandinetti, DJ: 20/06/2008)

"APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO DE VIDA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. SUICÍDIO. COMETIMENTO NO PERÍODO INICIAL DE DOIS ANOS DO CONTRATO. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. INTELIGÊNCIA DO ART. 798, DO NOVO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 54, § 4º, DO CDC. INOCORRÊNCIA. PRETENSÃO DE DEVOLUÇÃO DO MONTANTE DA RESERVA TÉCNICA. MATÉRIA NÃO DISCUTIDA NOS AUTOS. INOVAÇÃO EM GRAU RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE. EXEGESE DO ART. 515, § ÚNICO, DO CPC. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E POR MAIORIA DESPROVIDO NA PARTE CONHECIDA, VENCIDO DR. JORGE VARGAS, QUE DECLARA VOTO. (...) 2. A discussão central sobre a cobertura de seguro de vida, nos casos de suicídio, sempre foi se houve premeditação ou não pelo segurado. O tema acabou originando a edição de duas súmulas, uma do Supremo Tribunal Federal e outra do Superior Tribunal de Justiça. A Súmula nº. 105 do STF foi assim editada: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual da carência não exime o segurado do pagamento do seguro." Já a Súmula nº. 61 do STJ consagra: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado".

Com a edição do Código Civil, a questão acerca da premeditação restou afastada, já que o seu art. 798 veda expressamente o pagamento do capital segurado quando o suicídio ocorrer nos dois primeiros anos de vigência contratual. (...)" (TJPR, 8ª Câm. Cív., Ac. 9182, Rel. Des. Macedo Pacheco, DJ: 07/12/2007)

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:0110084-56.2006.8.19.0001 (2007.001.48215) - APELACAO - 1ª Ementa

DES. ODETE KNAACK DE SOUZA - Julgamento: 20/02/2008 - VIGESIMA CAMARA CIVEL APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZATÓRIA. SEGURO DE VIDA. SEGURADO QUE COMETEU SUICÍDIO. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 798 DO CÓDIGO CIVIL. COMPROVAÇÃO DE SUICÍDIO DO SEGURADO ANTES DE COMPLETADOS DOIS ANOS DE VIGÊNCIA INICIAL DO CONTRATO. EXCLUDENTE DO DEVER DE INDENIZAR. DESPROVIMENTO DO RECURSO.

Muitas outras jurisprudências são, sabiamente, no mesmo sentido. Entretanto, para espanto de todos, em sentido oposto manifestou-se o STJ, reavivando no trato da questão a discussão sobre a premeditação ou não do suicida/segurado para a avaliação do cabimento ou não da indenização. Vejamos trecho da decisão

....

Essa decisão é um retrocesso legal e social.

Nas palavras, dignas de repetição, proferidas pelo Ministro SEBASTIÃO DE OLIVEIRA CASTRO FILHO Ministro do Superior Tribunal de Justiça, este já antevia a necessidade de reajustes jurisprudências e afirmou: "O STJ, creio, em matéria de seguro, vai ter que se reajustar, vai ter que mudar a sua jurisprudência, inclusive em matéria de suicídio. A nossa jurisprudência, toda ela, está montada no sentido de determinar o pagamento. Só em casos excepcionais, provado que o suicídio foi intencional, que a pessoa, quando fez o seguro, já o fez com a intenção de beneficiar alguém com o capital segurado, através do suicídio, é que o STJ tem negado o direito ao recebimento. Mas, agora, ante os termos claros da Lei, parece que vamos ter que rever a jurisprudência."

Sempre precisa a observação de Diógenes Gasparini ao discorrer sobre o alcance do princípio da legalidade, frisando que este estende seus alcances a toda a atividade estatal, dentre elas não se exclui o Judiciário:

"Por fim, observe-se que o princípio da legalidade não incide só sobre a atividade administrativa. É extensivo, portanto, às demais atividades do Estado. Aplica-se, pois, à função legislativa, salvo nos países de Constituição flexível, onde o Poder Legislativo pode livremente, alterar o texto constitucional. O Legislativo, no caso, é também poder constituinte, como ocorre na Inglaterra. Aplica-se ainda à atividade jurisdicional. Assim, não pode o Judiciário comportar-se com inobservância da lei. Seu comportamento também se restringe aos seus mandamentos. O mesmo se pode dizer das cortes de contas. Em suma, ninguém está acima da lei."4

Como se pode depreender, não cabe ao magistrado interpretar a lei a partir de suposições abstratas ou fantasiosas. Apenas a realidade do caso concreto é que pode ditar a interpretação e, nos casos de suicídio de contratante de seguro de pessoas, a solução temporal determinada pelo legislador tem alcance social de grande magnitude, muito acima por certo, da interpretação restritiva esposada pela decisão do STJ.

O Poder Judiciário não pode torna-se um obstáculo ao crescimento e desenvolvimento do mercado segurador, braço forte do desenvolvimento econômico das nações e responsável direto pela construção de paz social.

Nesse contexto, dispõe a LICC (Lei de Introdução ao Código Civil):

"Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."

Com a vigência do Código Civil de 2002 ficou revogada a legislação anterior, aquela que fazia distinção acerca da premeditação do suicido como elemento de liberador do dever de indenizar. Na atualidade, deve ser aplicada a nova regra, que contempla a observância da carência de 2 (dois) anos para o pagamento de indenização no caso de suicídio.

Além disso, o que se pode concluir é que revogada a lei que fez surgir a súmula, mesmo caminho deve ser seguido por ela, o da revogação imediata.

Este ensinamento também encontra eco no que diz o Professor Tercio Sampaio Ferraz Junior: "(...) a jurisprudência, no sistema romanístico, é, sem dúvida, fonte interpretativa, mas não chega a ser fonte do direito (...)" i

Não se nega a importância da jurisprudência, que na definição do professor Miguel Reale é a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais. ii

Não sem uma dose de ousadia, é possível discordar de Tercio Sampaio e entender que a jurisprudência é sim fonte do direito e daí a grandeza da preocupação com a recente decisão emanada do STJ e da preexistência das sumulas à nova lei. Fontes de direito devem ser complementos uma das outras e não afrontarem-se, contrariarem-se, duelarem em torno de assunto de extrema clareza previsto em um ou outro diploma.

O Código Civil de 2002 calcado na experiência do diploma anterior, veio construir novos elementos para a segurança jurídica e para a paz na sociedade. O entendimento da súmula, calcado em herança da legislação já superada, não contribui nem para a segurança e nem para a paz.

Por isso é que com base na constituição, patrocinadora do principio da legalidade, requer-se que as sumulas 105 do STF e 61 do STJ sejam declaradas revogadas. Sua mantença demonstra caminho em sentido contrário do pretendido pela construção legislativa de 2002 e, nessa medida, desrespeito ao estado de direito. Se lei posterior pacificou determinado entendimento, sumula anterior a ela não pode persistir como não revogada, sob pena de limitar-se a eficácia da lei e com ela manter, no atraso dos julgamentos pelo sentimento, pela aparência, pela opinião, ações que não coadunam com os modernos estados democráticos de direito.

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1 https://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/24752/Reflexos_Novo_C%C3%B3digo.pdf?sequence=3

2 AMARAL, Cláudio do Prado. Bases Teóricas da Ciência Penal Contemporânea. S.Paulo: IBCCRIM, 2007, p. 62

3 Beck, Ulrich. Sociedade Del Riesgo. Hacia una nueva modernidade. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A, 1998.

4 6 - GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 4 ed., São Paulo:Saraiva, 1995, p. 06.

i FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 223 e 224.

ii REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 140.

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*Sócia fundadora do escritório Petraroli Advogados Associados

**Advogada.


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