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O caráter bilateral da penalidade contratual

No ponto específico das penalidades contratuais, o desequilíbrio é certamente abusivo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Atualizado em 14 de setembro de 2012 14:31

Já se tornou lugar comum afirmar que o Direito Contratual vive hoje novo paradigma, pautado pela superação do dogma da autonomia privada e do absolutismo do princípio de que os pactos, uma vez contratados, haveriam de ser cumpridos nos seus estritos termos. Não se trata, por óbvio, de afastar-se a observância obrigatória do pactuado, mas sim de compreender que o Poder Judiciário tem o poder (rectius, dever) de readequar as contratações que ofendam a princípios sensíveis da ordem jurídica. A constatação dialoga com o fato de que a liberdade e igualdade dos sujeitos não estão presentes em todos os contratos, pelo que o conteúdo contratual nem sempre é justo.

Do outro lado da moeda, está a constatação de que o Direito das Obrigações, especialmente no campo dos contratos, tem rumado em direção à prevalência da conservação dos pactos em detrimento de sua invalidade. Sustenta-se que, em sendo possível a produção de efeitos, não seria crível impor-se a sanção de invalidade (seja nulidade, seja anulabilidade) por serem estas situações patológicas. Prefere-se, assim, a manutenção do pactuado, ainda que sob nova perspectiva.

Diante deste contexto, surge um contrato reescrito, integrado pela incidência do princípio da boa-fé, bem como da função social dos contratos que, em última análise, é a razão de sua proteção jurídica. Certo, no entanto, que a mera proclamação legislativa de tais princípios seria insuficiente se não acompanhada pela competente apreciação dos conceitos à luz dos casos concretos que chegam a julgamento nas Cortes brasileiras.

O entendimento deste novo conceito, ou desta releitura pautada em torno do equilíbrio contratual, há de ser feito considerando o conteúdo das decisões judiciais. A ponderação entre a autonomia privada dos particulares, o princípio da igualdade bem como o preceito de Justiça material tem sido realizada de maneira minuciosa pelo Superior Tribunal de Justiça, responsável pela uniformização da jurisprudência pátria em torno dos conceitos trazidos pela legislação infraconstitucional.

Pois bem. Dois julgados recentes, dentre tantos outros, demonstram o trilhar deste caminho necessário. Refiro-me ao REsp 1.119.740/RJ e ao REsp 955.134/SC, em especial quanto à conclusão de que a cláusula penal (ou mesmo a multa moratória) inserta em contratos há de ser interpretada bilateralmente, ou seja, ainda que se preveja contratualmente apenas a sanção a uma das partes, esta há de ser aplicada na mesma intensidade ao descumprimento imputável à outra.

O primeiro julgado, de relatoria do ministro Massami Uyeda (j. 27.09.2011) cingia-se à análise da definição quanto à imposição de cláusula penal unilateralmente estatuída ao outro contratante, que dela não era destinatário. Tratava-se de contrato de compromisso de compra e venda no qual a incorporadora atrasara a entrega do imóvel. O promitente-comprador, embasado na cláusula penal estabelecida para caso de seu inadimplemento, pretendia a cobrança da mesma pena convencional pelo atraso imputável ao partícipe contratual.

Em primeiro e segundo graus o feito foi julgado improcedente, em suma ao entendimento de que não haveria expressa pactuação da cláusula em favor do promitente-comprador e que, diante disso, dever-se-ia privilegiar a autonomia da vontade e o princípio pacta sunt servanda. A decisão do Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo divergência jurisprudencial quanto à matéria, reafirma o entendimento de que os princípios da boa-fé, da função social e da equivalência são critérios de interpretação do real intento das partes, levando em consideração o contrato em suas especificidades, para além de mero padrão abstrato e genérico.

Neste sentido, a argumentação do ministro relator é justamente no sentido de obter interpretação a partir de critérios de razoabilidade e proporcionalidade: considerando a prefixação de danos em cláusula penal, não haveria razão para impor-se à parte lesada pelo descumprimento a comprovação do efetivo prejuízo, caminho certamente mais complexo. A questão, com efeito, liga-se ao próprio caráter bilateral e sinalagmático do pacto, a merecer interpretação conforme, na busca do estabelecimento do equilíbrio.

A conclusão é alcançada ainda que sem aplicação do Código de Defesa do Consumidor, vez que o contrato fora firmado anteriormente à sua vigência. É certo, contudo, que referidos princípios existiam na ordem jurídica brasileira muito antes deste diploma, ou mesmo do Código Civil de 2002. Certo, também, que sua estabilização no corpo legal afasta quaisquer dúvidas outrora existentes quanto à sua plena aplicabilidade às relações jurídicas obrigacionais.

O julgado, assim, para além de prestigiar o equilíbrio contratual, tem o condão de reafirmar que a principiologia contemporânea prescinde de expressa disposição legal, e que o alargamento do conteúdo do contrato pode ser buscado em detrimento de uma interpretação meramente literal.

Exatamente nesta linha, o segundo julgado referido (REsp 955.134/SC, j.16/08/2012) contém capítulo destinado à análise da bilateralidade de penalidade moratória, originalmente estipulada apenas em favor de um contratante. Segundo voto do Relator, ministro Luis Felipe Salomão, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor faz com que seja abusiva a estipulação da penalidade em desfavor apenas do consumidor, sem correspondência ao fornecedor.

Da ementa do julgado, extrai-se que o entendimento, ainda que embasado no Código de Defesa do Consumidor, pode ser extraído dos princípios gerais de direito, assim como do imperativo de equidade. De fato, não há como se sustentar que apenas uma das partes seja apenada pelo descumprimento, não incidindo na mesma sanção o partícipe contratual.

Por evidente que os entendimentos não afastam a possibilidade de se criar, contratualmente, cláusulas específicas destinadas apenas a uma das partes, até mesmo porque nisto constitui a ratio da criação contratual. A bilateralidade, por certo, não implica a necessidade de que toda e qualquer obrigação contratual seja igualmente bilateral. Ocorre que, no ponto específico das penalidades contratuais, o desequilíbrio é certamente abusivo e, sendo situação patológica, há de ser reequilibrado à luz da principiologia contratual contemporânea.

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*Renata Carlos Steiner é advogada do Escritório Professor René Dotti, em Curitiba-PR. É mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR e professora de Direito Civil na PUC-PR

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