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Para não dizer que não falei da galinha

Uma decisão proferida pelo STJ, em pedido de HC, culminou no trancamento da AP movida contra um acusado por tentativa de furto de uma galinha.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Atualizado em 18 de outubro de 2012 15:04

Interessante decisão foi proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em pedido de habeas corpus que teve a ministra Assusete Magalhães como relatora e culminou por trancar a ação penal movida contra um acusado por tentativa de furto de uma galinha, avaliada em R$30,00.

A resposta do Tribunal da Cidadania foi conclusiva no sentido de que "a intervenção do direito penal só se justifica quando o bem jurídico protegido tenha sido exposto a um dano expressivo e a conduta seja socialmente reprovável".1

Perfeita a adequação da decisão.

O furto, se ocorreu, ficou na esfera tentada. Talvez até, quem sabe, o galináceo tenha se debatido e cacarejado com todas as penas para se livrar do invasor de seu galinheiro. Tal fato, por si só, tornou-se uma circunstância alheia à vontade do larápio. Ponto para a galinha.

O Código Penal, com a frieza que lhe é peculiar, com seu cansado olhar vetusto, corroído pelo tempo, sem qualquer remodelagem que o faça recobrar as forças, verdadeiro corpo sem alma, irá examinar o infrator à distância, justamente para não captar qualquer lampejo de sua sensibilidade e, com toda pompa e circunstância, anunciará a adequação típica da conduta apontando-a para os pés do crime de furto, mesmo com seu iter interrompido e exigirá a aplicação da reprimenda suficiente para censurar o ilícito praticado.

De posse da espada de deusa Temis, sem ter noção de seu ato, pugna pela aplicação do fiat justitia, sem se esquecer, no entanto, que, no caso, pereat mundus. Mal sabendo que, no final da linha, pior ainda, colidirá com o summum jus, summa injuria.

O delegado de polícia assume a notitia criminis e determina, conforme regramento do artigo 5º, I do Código de Processo Penal, a instauração do competente inquérito policial apuratório. De ofício. Não poderá fazer nenhuma apreciação a respeito do fato, a não ser cumprir a lei.

O promotor de justiça encarregado de analisar o procedimento policial busca luzes em sua opinio delicti. Após muito vasculhar, encontra-a no recôndito de sua consciência e, rapidamente, como já emite olhares de advertência, acenando que o nec delicta maneant impunita, conhecido como princípio da legalidade, está exigindo uma atuação exemplar, no sentido de que seja invocada a tutela jurisdicional penal. Se não bastasse, outros dois princípios, o da obrigatoriedade e indisponibilidade, dispostos nos artigos 24 e 42 do procedimento penal, ficam fustigando sua mente, espreitando-a de forma censurável. Nesta verdadeira sessão de tortura, de um lado a lei e de outro sua corregedoria, cede à tentação aparentemente mais fácil, pois vai atender a um interesse social prevalente e oferece a peça delatória criminal.

A jurisdição, sentindo presentes os requisitos básicos para a propositura da ação e o demonstrativo razoável da prática do ilícito, dá por instaurada a ação penal persecutória. Mas o mesmo Código que se apresentou como inflexível e rigoroso, num repente, abre suas comportas e, generosamente, incumbe ao Juizado Especial Criminal a apreciação da causa. Não antes de rotulá-la de pequeno potencial lesivo, aquele que os romanos, no nascedouro do direito, observavam que de minimis non curat praetor e que em nosso direito levou o nome pejorativo de crime de bagatela, mas que em sua essência significa que a Justiça deve cuidar realmente das coisas consideradas sérias e relevantes para a comunidade.

Mesmo que seja realizada a justiça da lei com a manutenção de seu império, a justiça social, aquela que deve atender a realidade de um povo, fica desalojada e renegada a segundo plano. Bem dizia Maximiliano que o Direito "nasce na sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça".2

Em tempo de celeridade, de novas culturas e costumes sociais que atropelam o mais pacato cidadão, onde o Judiciário não tem mais pauta para dirimir tantos conflitos, tem-se a impressão que é mais aconselhável o processo e, principalmente, levá-lo a uma das mais altas Cortes do país. Não há como diminuir a criminalidade, se o próprio Estado, pelo seu regulamento ultrapassado, fica permitindo e açodando a persecução penal de fato que não traz qualquer prejuízo considerado relevante à comunidade.

O quadro faz lembrar o livro escrito por Arruda Campos, cujo título é a Justiça a Serviço do Crime. Na obra, o autor faz ver que a lei gera o crime. Parte do princípio que representa o interesse dos grupos dominantes e o Judiciário, como escravo da lei, deve fazê-la imperar, mesmo sem o apoio do povo, pois o critério da lei é o antijurídico e não o antissocial. Não é dado ao Judiciário discutir a intenção da lei e nem escolher seus destinatários.

Recordo-me e aqui peço permissão para tanto, quando exercia meu cargo no Ministério Público do Estado São Paulo, ainda sem muita experiência, deparei-me com uma situação semelhante ao fato narrado no início. O delegado de polícia recebeu notitia criminis dando conta de que cerca de vinte alunos aproximadamente de uma escola agrícola, subtraíram um leitão de uma propriedade rural vizinha e o comeram na festa de conclusão do curso. O proprietário exigia uma resposta penal. Li o inquérito várias vezes e não encontrava uma saída que fosse justa. Tratava-se furto qualificado pelo concurso de agentes e praticado durante o período de repouso noturno. Eventual penalização acarretaria graves sequelas ao futuro daqueles jovens.

Não que o calhamaço inquisitivo fosse aumentando, mas todas as vezes que olhava para ele via sobre uma mesa um delicioso leitão assado, com o aroma peculiar de um quitute bem feito, com o couro brilhante e artisticamente pururucado. E com uma maçã entre os dentes que sobraram. Verdadeiro banquete para os deuses Dionísio, dos gregos e Baco dos romanos, em razão também das convidativas cervejas que se espalhavam pela mesa.

Pensei cá comigo: a lei aceita o furto famélico como estado de necessidade, porém, não é o caso, pois os estudantes não furtaram para saciar a fome e sim para comemorar o encerramento do curso. Recomendei aos já indiciados que fizessem o pagamento do valor do leitão ao proprietário e trouxessem o recibo à Promotoria de Justiça. Assim foi feito e assim foi lançada a proposta de arquivamento, com o argumento de que se tratava de "furto comemorativo", comparado analogicamente ao furto famélico, observando que a vítima não experimentou qualquer prejuízo e o valor do leitão, rateado pelo número de alunos, representava uma quantia ínfima. E a lei, continuava eu, tem que ser flexível e na sua mais pura hermenêutica, deve abrigar interpretação que seja condizente com uma realidade. Neruda, poeta e não jurista, para finalizar minha manifestação, dizia que a poesia é muito mais útil à pessoa para quem ela serve do que ao seu próprio autor. Cada um tem que fazer uso dela de acordo com sua necessidade.

O juiz, apesar de detalhista, era conhecedor dos arroubos da juventude. Abraçando o inquérito, veio conversar comigo e indagou com a curiosidade de um julgador sensato: Você acha mesmo que se aplica a analogia neste caso? Tenho para mim que sim, respondi com total segurança, desde que seja in bonam partem. E o inquérito do leitão partiu fumegante para o arquivo.

E viva o Neruda!

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1 HC 243958/MG. Julgado em 18 de set. de 2012. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107131. Acesso em 27 de set. 2012

2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 137

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp

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