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Cordialidade Forense

Sobre o clamor por urbanidade no meio jurídico.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Atualizado às 09:55

"Sêde sempre muito amáveis.
Sobretudo, muita amabilidade..."1

É, faz tempo, corria o ano da graça de 1966. As "Guardas Vermelhas" surgiam na China. Na televisão estreava o seriado "Jornada nas Estrelas". Indira Gandhi tornava-se primeira-ministra na Índia. Gritava-se o "Black Power" nas ruas da Califórnia. No Brasil instituía-se o Fundo de Garantia. O apresentador Chacrinha abalava o conservantismo ("Eu não vim para explicar, vim para confundir!"). Nasciam Cláudia Raia e Romário. Morria Walt Disney.

Em meio a tudo isso, um bisonho e trêmulo "solicitador acadêmico" (o estagiário da época) resolveu despachar certa petição, pessoalmente, com o Juiz Hely Lopes Meirelles, titular de uma das varas da Fazenda Nacional. Recebido pelo já então emérito publicista, foi convidado a sentar-se. Enquanto o apavorado estagiário transpirava em bicas, Dr. Hely leu com atenção o arrazoado (provavelmente inepto) para depois, ministrando aula magna sobre preclusão administrativa, indeferir o requerimento.

E quando o desapontado (pelo despacho), mas aliviado (pela recepção), acadêmico deixava o gabinete do terceiro andar do Fórum João Mendes Júnior, o saudosíssimo Magistrado paulista o interpelou: "Moço, nervoso por quê? Recebê-lo era de minha elementar obrigação e, mais do que isto, recebê-lo cordialmente, como espero ter feito."

Passadas quatro décadas desde aquela invernal tarde, continuo a manter, viva e presente, aquela lição de lhaneza e cavalheirismo, a cada dia mais convencido de que as regras impositivas da cordialidade forense não devem representar preceitos abstratos e inúteis, tão só destinados a compor artigos e parágrafos das leis orgânicas e dos estatutos deontológicos da Magistratura, da Advocacia e do Ministério Público.

Gostem ou não, nas relações forenses os advogados,2 juízes3 e promotores públicos4 estão sujeitos ao dever genérico da "urbanidade". Ou seja, daquilo que os léxicos definem como o "conjunto de formalidades e procedimentos que demonstram boas maneiras e respeito entre os cidadãos; afabilidade, civilidade, cortesia".5 Portanto, "urbano" não é quem não se mostrar afável e cortês, nada importando possa eventualmente dispensar, ao interlocutor, tratamento protocolar. O "V. Exa.", o "Dr.", o "nobre advogado" e o "Ilustre Promotor" não satisfazem, sozinhos, a exigência da urbanidade, termo que expressa mais do que simplesmente isso. Aliás, muito mais.

Estarrecido, com dorida e lastimável frequência tenho visto as carrancas com as quais certos magistrados acolhem ("acolhem"?) os patronos que a eles se dirigem. A obstinação de outros na negativa ao despacho nas petições, ordenando em seu lugar a protocolização cartorária. A atitude de determinados membros de colegiados jurisdicionais que, pura e simplesmente, rechaçam receber os advogados ou, para recebê-los apegam-se ao herético e irrealizável requisito da presença, conjunta e concomitante, dos procurados adversos. Com não menor sofrimento, presencio o desdém, antipático e incivilizado, vez por outra tributado a certas sustentações orais cujo preparo custou, a jovens e angustiados colegas, enorme trabalho em prepará-las e, quase sempre, a preocupada insônia da véspera.

Todavia, não se atribua aos juízes (alguns deles, felizmente) o monopólio contemporâneo da inurbanidade. Nós mesmos, os advogados (alguns de nós, felizmente), temos nesse passo cometido graves faltas. Nas lides judiciais, segundo advertiu Elias Farah, devemo-nos "lealdade e cortesia", afastando-nos das paixões e dos rancores de nossos clientes, da insolência e do enxovalho.6 A "fidalguia" deve constituir a disposição habitual do advogado para com seus colegas7 - e não apenas em relação a eles, mas a todos os partícipes do processo -, o que evidentemente não significará, no cumprimento do mandato, qualquer "covardia ou aquietante comodismo".8

Nos arrazoados, o velho e o bom data venia vem sendo posto de lado, ao mesmo tempo em que, graças às facilidades informáticas, as iniciais e as contestações se agigantam, ocupando um número crescente de enfadonhas e indigestas laudas. Com as exceções de praxe, foi esquecido o salutar hábito de render homenagem ao colega contrário ("malgrado o qualificado patrocínio..."), ou ao juiz prolator da sentença apelada ("em raro desacerto, o MM. Juiz..."). Aquilo que agora vale, e a frieza do computador favorece, é a transcrição desordenada de escólios doutrinários e jurisprudenciais, nada contando a sua pertinência. As reverências, altaneiras mas respeitosas, são tidas como hábito do passado, perfumaria saudosista de bacharéis arcaicos.

Contava Calamandrei que quando, "(...) em recente visita à Universidade de Cambridge, averiguei que na Inglaterra não existem cátedras de Direito Processual e que o curso normal do Processo se encontra ali confiado, mais do que às formosas construções sistemáticas, ao costume judiciário, à lealdade do contraditório e à cordialidade de relações entre juízes e advogados, perguntei-me se nossas tão elaborados construções teóricas não são mais do que um alarde, e me persuadi cada vez mais que os advogados e juízes ingleses não estariam dispostos a trocar, em matéria de justiça, nossa ciência por seu empirismo."9

Com efeito. À missão da Justiça e ao desempenho da Jurisdição, essa "cordialidade de relações entre juízes e advogados", mencionada por Calamandrei, ostenta tanta importância quanto a que possuem as normas, substanciais ou instrumentais, do Direito Positivo. Já se disse, e com acerto, que a inexistência do sentimento pode comprometer a racionalidade.10 Ouso completar: a presença de sentimentos hostis inevitavelmente prejudicará a lógica jurídica, a cognição dos fatos controvertidos e a inteligência razoável das teses contrapostas. O vetor decisório e a ratio da prestação jurisdicional deixam de ser a arte do bom e do justo, substituídos pela emulação, pela antipatia pessoal, ou ainda, pelo desejo de vingança.

Porque tal decorre das fragilidades subjacentes à natureza humana, quando a urbanidade for renegada não ocorrerá jurisdição digna do nome. Sacrificando-se a razão, argumenta-se - ou até pior, decide-se - sob o único embalo de emoção má, não da boa, que é benéfica e louvável. No conhecido fenômeno psicanalítico da "transferência", a figura da parte impetrante cede lugar ao advogado agressivo que a representa, ou representou. O que interessa não é vencer a causa nem realizar a justiça do caso concreto. O que importa é derrotar o profissional adversário ou fazer sucumbir, por meio da decisão desfavorável, o causídico com o qual se antipatizou.

Refletindo a si mesmo, anotou Antonio Carlos Mathias Coltro que o juiz desejável é aquele "cavelheiresco", exatamente por isso capaz de sondar mentes e corações.11 O advogado desejável, acrescento, também será necessariamente "cavalheiresco". Por ação ou por omissão, não lhe são permitidos, e jamais foram, os grosseirismos e as indelicadezas que, para nossa vergonha, em progressão geométrica os protocolados forenses vêm abraçando.

Bem sei que, antes de constituir desvio funcional, nos entreveros judiciários a carência da cordialidade é produto da criação familiar lacunosa, em suma, um "problema de berço", como insistiam nossos avoengos. Nem por isso, contudo aceite-se a incivilidade como invencível mal de uma sociofobia jurídica. As faculdades, as escolas de formação, os órgãos corporativos fiscalizadores, todos eles têm, nesse cenário de hostilidades, um imprescindível papel, didático e corretivo. O próprio manejo mais habitual, pelo Judiciário, da medida sancionadora prevista no artigo 15 do Código de Processo Civil - que é tão rara e avaramente aplicada -, representaria valiosa tutela dessa almejada cordialidade.

A vulgaridade é a água-forte da mediocridade, ponderou Ingenieros.12 Da mesma forma, a chavasquice e a brutalidade traduzem o fértil campo no qual brotam e crescem os arremedos de jurisdição e as pantomimas forenses. Não reclamo flores, mas revoltam-me os espinhos gratuitos que certas peças judiciais insistem em ejetar. Combata-se o bom combate, sem jamais transformar os juízos e os tribunais em abrutalhados botequins ou raivosas arquibancadas.

Afinal, meus amigos, é para compor litígios que a Justiça existe, não para gerar novas e piores desavenças.

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1 Pedro Lessa, apud Herotides da Silva Lima, O Ministério da Advocacia, 1ª ed., São Paulo, Empresa Gráfica e Industrial A Palavra, p. 111.

2 Lei 8.906/1994, artigo 33, c.c. Código de Ética, artigo 44.

3 Lei Complementar 35/1979, artigo 35, inciso I.

4 Lei 8.625/1993, artigo 43, inciso IX; Lei Complementar Paulista 734/1993, artigo 169, inciso IV.

5 Antônio Houaiss et al., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1ª ed., Objetiva, 2001, p. 2.809.

6 Ética Profissional do Advogado, Juarez de Oliveira, 2003, p. 53.

7 Ivan Szeligowski Ramos, "Do Dever de Urbanidade no Código de Ética e Disciplina da OAB", em Ética na Advocacia - Estudos Diversos, 1ª ed., Forense, 2000, p. 127.

8 Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogado, 1ª ed., Almedina, 2005, p. 304.

9 Piero Calamandrei, A Crise da Justiça, Livraria Líder e Editora Ltda., 2004, p. 14, n.g.

10 Lídia Reis de Almeida Prado, O Juiz e a Emoção - Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, Millennium, 2003, p. 130.

11 "Uma Visão Humanística da Prática Judiciária", in Aspectos Psicológicos na Prática Judiciária, Millennium, 2002, p. 36.

12 José Ingenieros, O Homem Medíocre, Edicamp, 2002, p. 67.

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* Manuel Alceu Affonso Ferreira é advogado do Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados

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