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Cláusula penal e indenização suplementar

O estabelecimento das diferentes funções da penalidade contratual e a possibilidade de exigir-se indenização suplementar.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Atualizado em 9 de maio de 2013 15:56

Apesar de inserida em grande número dos contratos, o tratamento jurídico da cláusula penal ainda gera inúmeras controvérsias, sendo seu estudo sempre atual e relevante para a prática jurídica. Como já se teve oportunidade de afirmar (Migalhas 17/9/12), a jurisprudência do STJ tem sido reiteradamente chamada à resolução de relevantes questões no que toca a este pacto acessório. Dentro das inúmeras discussões atuais, o presente texto fixa-se no estabelecimento das diferentes funções da penalidade contratual e, a partir delas, na possibilidade de exigir-se indenização suplementar.

O pano de fundo da discussão está no julgamento do REsp 1.355.554, noticiado em destaque no sítio eletrônico do STJ em janeiro de 2013, no qual o Tribunal confirmou a possibilidade de cumulação da cláusula penal moratória e a indenização por perdas e danos, independentemente da estipulação contratual acerca desta possibilidade. Tratava-se de discussão envolvendo uma relação de consumo, no qual o casal adquirente de um imóvel, cuja entrega atrasara, exigia tanto o pagamento da multa moratória como a indenização por lucros cessantes, estes consistentes no aluguel que se deixou de ganhar.

A compreensão do entendimento tomado em referido julgamento perpassa o estudo das diferentes funções exercidas pela cláusula penal. Em verdade, dadas as peculiaridades de cada espécie, melhor seria falar-se em cláusulas penais, no plural. Quer dizer que, pese embora a denominação única, o conteúdo de cada uma das figuras é diverso, pelo que o tratamento diferenciado é justificado.

Os contratantes podem estipular cláusula penal, sendo esta sempre voluntária. Uma vez contratada, no entanto, sua aplicação é cogente. O art. 409 do CC/02 deixa clara a possibilidade de contratação de cláusula penal incidente sobre diferentes situações, em especial, o não cumprimento da obrigação ou a mora, simplesmente. O rol é nitidamente exemplificativo, pois, não infringindo a lei, a autonomia das partes pode criar cláusulas penais especiais. Mas limitemo-nos a duas espécies: moratória e compensatória.

Na primeira, decorrente da mora no cumprimento da obrigação, o devedor moroso haverá de pagar a prestação (pois continua a ela obrigado) acrescido do valor estipulado a título de multa moratória. Resta evidente que o mero pagamento da cláusula penal não tem o condão de satisfazer do credor, o que se dará com o cumprimento da prestação. É o típico exemplo da multa estipulada para atraso no pagamento de determinada prestação, como aquela derivada de cotas condominiais em atraso, ou mesmo de pagamento referente à locação de imóveis: o pagamento da multa não afasta o pagamento do valor principal, que permanece devido.

Em situação diametralmente oposta está a chamada cláusula penal compensatória. Nesta, o pagamento da multa correspondente exonera o devedor do cumprimento da obrigação principal, sendo, portanto, dela substitutiva (sendo este o sentido da alternatividade disposta no art. 410, CC/02). Trata-se de uma cláusula que pré-liquida a indenização devida pelo descumprimento da obrigação, havendo ou não danos.

Não se pode deixar de notar, no entanto, que também a cláusula penal moratória é devida independentemente de qualquer efetivo dano, o que poderia levar à compreensão aproximada de sua função de também pré-liquidar danos. É dizer: os contratantes ajustam valor anteriormente determinado de indenização que será devido de forma cumulativa à prestação principal. Ainda que não seja sua função primordial, seria possível seu reconhecimento e, mais, este afastaria a possibilidade de reparação suplementar de danos?

No caso supra mencionado, a discussão cingia-se justamente à complementação da multa com as perdas e danos. Ao entendimento do ministro relator Sidnei Benetti, o cumprimento da obrigação (no caso, a entrega do imóvel), o pagamento da multa moratória e a indenização por perdas e danos são cumuláveis. A fundamentação está no fato de que a reparação de danos decorre naturalmente do próprio sistema de responsabilidade civil, não sendo afastada pela contratação da cláusula penal de natureza moratória.

Na visão do julgado, e da jurisprudência do STJ, a cláusula penal em casos de mora não teria função de pré-liquidação de danos como se dá na compensatória (que afasta a indenização suplementar), daí porque poderia ser cumulada com a indenização a este título. A questão é interessante e, dado o teor da decisão, permite que sejam traçadas algumas importantes conclusões e reflexões.

Salvo estipulação em contrário, o valor da cláusula penal não poderá ser complementado. É este o disposto no art. 416, parágrafo único, CC/02. Ao assim proceder, estar-se-ia quebrando a lógica do sistema, em especial quanto à função de pré-liquidação de danos, e transformando a cláusula penal em um fim em si mesmo, cuja incidência seria adicional à garantia legal de reparação de danos. O artigo legal não faz distinção entre as cláusulas compensatória e moratória. Adotado o entendimento do julgado, a conclusão seria pela incidência do disposto apenas à cláusula compensatória, afastada sua aplicação nos casos de multa moratória.

Ao assim proceder, distingue-se de maneira precisa as funções de cada cláusula, tornando evidente que suas hipóteses de incidência são diversas, tal como a lógica de cada qual. À cláusula compensatória, restaria a função primordial de pré-fixar o valor da indenização; à cláusula moratória, restaria a função única de prevenir o descumprimento da obrigação, sem que se possa falar em pré-liquidação de danos (sendo esta função, portanto, desconsiderada).

A delimitação de tais funções é relevante para a prática jurídica, especialmente para o entendimento acerca da viabilidade e alcance da aposição da multa moratória em contratações. Não se pode esquecer, por oportuno, que a temática em torno da cláusula penal há de ser vista sob dois aspectos: tanto do ponto de vista do credor, que possui facilidade de recebimento de valores independentemente de comprovação de prejuízos, como do ponto de vista do devedor, que sabe de antemão a limitação do valor a ser pago em caso de descumprimento.

Dado que o entendimento exarado fixa os parâmetros de compreensão da função da cláusula moratória, independentemente de seu destinatário, não se pode descurar que também o consumidor pode vir a ser demandado pelo pagamento cumulado da penalidade pela mora e por perdas e danos (outrossim, a cláusula penal é, salvo justificativa idônea, bilateral). Foi o que se deu, por exemplo, no REsp 134445/MS, julgado em 2010 e de relatoria da ministra Nancy Andrighi, no qual se fez constar: "A multa prevista pela cláusula penal não deve ser confundida com a indenização por perdas e danos pela fruição do imóvel, que é legítima e não tem caráter abusivo quando há uso e gozo do imóvel".

Por fim, e a título de provocação, à medida que se entende que a cláusula moratória não fixa danos previamente, mas apenas serve para punir o atraso, as perdas e danos que podem ser exigidas incluem ou não o valor já pago a título de punição? Em outras palavras, a indenização cumulada, sem caráter suplementar, importaria bis in idem? A elucidação jurisprudencial desta situação é tão importante quanto a consolidação do entendimento no que toca às funções exercidas pela penalidade contratual.

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* Renata Steiner é advogada do Escritório Professor René Dotti

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