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As operadoras de planos de saúde e a resolução normativa 319/ANS/2013

Flávia Tiezzi Cotini de Azevedo Sodré

Norma obriga as operadoras de planos de saúde a justificarem por escrito as negativas de cobertura aos beneficiários.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Atualizado em 22 de maio de 2013 15:21

Entrou em vigor no último dia 7/5 a resolução normativa 319/ANS/2013, que obriga as operadoras de planos de saúde a justificarem por escrito as negativas de cobertura aos beneficiários que assim solicitarem.

De acordo com o Ministério da Saúde, a negativa de cobertura respondeu por 76% das reclamações recebidas em 2012 pela ANS,1 órgão regulador do sistema, o que refletiu na modificação dos mecanismos de fiscalização, visando a um controle mais rígido em relação às regras para a negativa de cobertura por parte dos planos de saúde.

De início, é preciso ter em mente que o contrato de plano de saúde não pretende ser, nem se equivale a um sistema de atendimento universal, embora a política legislativa possa, atualmente, caminhar nessa direção, sem ponderar, contudo, todos os efeitos da forte intervenção estatal no mercado - a atuação do ente tem caráter suplementar, e não substitutivo das obrigações do Poder Público.

Logo, é lícita e possível a recusa por parte das operadoras em autorizar determinados procedimentos, como, por exemplo, tratamento clínico ou cirúrgico experimental e procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos. E as causas para as negativas de atendimento estão previstas na lei 9.656/98, que dispôs sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde.2

Antes da nova resolução, somente a negativa injustificada de atendimento poderia provocar a suspensão da venda do plano; a partir de sua entrada em vigor, outras ações passaram a ser passíveis de sanção por parte do governo, a saber:

- Negativa de atendimento dentro do rol de procedimentos obrigatórios que o plano deve cumprir;

- Negativa de atendimento no período de carência;

- Não oferecer ou negar exame sem justificativa procedente;

- Não garantir o reembolso;

- Demora maior que 48h para justificar por escrito o motivo de ter negado autorização para qualquer procedimento médico.

Com a nova regra, o plano de saúde deverá informar a razão da negativa ao beneficiário em linguagem clara, com a indicação da cláusula contratual ou o dispositivo legal que a autorize, no prazo de 48 horas, a contar da solicitação feita pelo beneficiário. A resposta deverá ser por escrito, podendo ser encaminhada por correspondência ou por meio eletrônico.

Na eventualidade de a operadora deixar de informar por escrito os motivos da negativa de cobertura previstos em lei, pagará multa de R$ 30 mil. E, em se tratando de caso de urgência e emergência, a multa é elevada para R$ 100 mil.

Com a obrigatoriedade da comunicação por escrito, em linguagem clara e acessível, a tendência é o aumento da possibilidade de meios de acesso dos consumidores a informações das operadoras relativas aos planos negociados, estimulando o contato direto entre os contratantes e permitindo às empresas implementar sistemas de gestão e fiscalização internos mais eficazes.

Além disso, com a informação "em mãos" do consumidor, a ANS poderá fiscalizar a execução dos planos de saúde oferecidos no mercado, com o intuito de verificar se a justificativa apresentada pela operadora se sustenta legalmente e, a partir de então, tomar as medidas cabíveis de uma forma mais célere e mais segura.

Por sua vez, os planos de saúde deverão ter cuidado na elaboração de documentos comprovando a negativa de cobertura a determinado procedimento, o cumprimento dos prazos administrativos e a legalidade da sua conduta, ocasião em que poderão justificar a correção da recusa.

No mínimo, a medida ajudará a impedir que muitos beneficiários sejam surpreendidos pela negativa na cobertura de um tratamento ou exame, sem uma justificativa que possam compreender, e a composição administrativa poderá prestar-se a convergir as expectativas dos contratantes ao espírito do ordenamento jurídico, o que pode reduzir o elemento subjetivo de insatisfação do consumidor e, por consequência, a procura pela reparação no Poder Judiciário.

Como se sabe, os contratos entre operadoras de planos de saúde e beneficiários são típicos contratos de adesão, cujas cláusulas são previamente estipuladas, não possibilitando ao consumidor qualquer alteração, supressão ou acréscimo de suas cláusulas, muito embora exista um conteúdo mínimo determinado pela ANS, conforme autorizado por Lei, em cumprimento dos princípios e regras constitucionais.3

Justamente essa a fonte político-jurídica da intervenção estatal no mercado de planos de saúde e seguros de saúde, sem descuidar da justificativa da vulnerabilidade na relação junto ao fornecedor, atraindo a aplicação das normas do CDC, de tal sorte que, em eventual demanda judicial, incide a lei consumerista na interpretação dessas categorias contratuais, valendo destacar a previsão do artigo 6º, inciso VIII, do CDC, que permite a inversão do ônus da prova pelo órgão jurisdicional - o réu deve fornecer provas que as pretensões do autor não podem ser acolhidas no Judiciário, invertendo-se tradicional regra, pela qual quem alega deve provar o que alega.

Atentando-se corretamente as operadoras e seguradoras à nova resolução, na eventualidade de o consumidor ingressar com ação judicial, invertendo-se o ônus da prova, facilmente os planos conseguirão demonstrar a correção e a licitude da sua conduta.

Estabelecendo-se sistemas e métodos de esclarecimento aos consumidores sobre a recusa no atendimento e seu registro, estará ao alcance das operadoras a possibilidade de arrebatar um meio de prova que, no futuro, poderá evitar reparações na casa dos milhares.

As operadoras sempre tiveram que explicar o motivo da negativa de uma consulta, exame ou cirurgia, mas não havia a obrigatoriedade do registro escrito, o que, muitas vezes, enfraquecia e dificultava a defesa em ações judiciais, pois somente encontram-se disponíveis provas testemunhais ou documentos não padronizados, nem revisados.

Assim, ainda que se entenda, inicialmente, que o "cerco está se fechando" sobre as operadoras de planos de saúde, fato é que a nova Resolução poderá trazer maior segurança e previsibilidade, desde que exista, evidentemente, uma cultura empresarial voltada para a convergência das expectativas dos contratantes, especialmente os consumidores, à realidade da legislação e do mercado sobre a qual esta intervém.

É importante que o consumidor, ao se deparar com situações como essas, busque a orientação de um profissional qualificado, com o intuito de avaliar a existência ou não de proteção legal e contratual daquela prática que deu origem à negativa de autorização do tratamento por parte do plano de saúde. E não menos importante é a conduta das operadoras e seguradoras no sentido de criar um ambiente comercial e administrativo sadio e responsável, o que é muito facilitado por uma orientação profissional especializada.

A boa-fé, não em seu caráter íntimo, pessoal, mas em um plano quase que institucional, estrutural, acoplado por isso ao mercado - daí falar-se em boa-fé objetiva - permeia todas as relações entre as operadoras e os consumidores, e, por isso, quando passível de comprovação contundente, é fator respeitado pelos órgãos do Poder Judiciário.

Embora não seja possível a eliminação da participação no mercado de free riders - consumidores e operadoras irresponsáveis que, ao final, acabam por desencadear concorrência desleal, o que a ordem jurídica não admite - o Código de Defesa do Consumidor busca o equilíbrio entre as partes, que deverão atuar em consonância com a boa-fé; logo, busca-se restringir que uma parte tente obter vantagem indevida de outras, como incentivar que ambas convivam em harmonia.

Dessa feita, a pré-compreensão dos magistrados sobre as operadoras e seguradoras, em causas versando à negativa de atendimento, especialmente no caso de empresas de grande porte, com milhares de processos em curso, pode ser modificada, aproveitando-se as empresas da nova Resolução da ANS para a implantação de padrões eficientes de registro, documentação e fundamentação dos procedimentos de recusa, de um lado, e de subsídios para defesas administrativa e judicial, de outro; também nessas hipóteses, as operadoras de planos de saúde deverão ser orientadas para prevenir contingências futuras.

Por essa razão, a medida deve ser encarada de forma positiva, principalmente por que irá trazer maior transparência no relacionamento entre as empresas no mercado em questão e os seus clientes, oportunizando uma situação de aprendizado visando à redução do grau de litigiosidade.

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1 https://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTICIA=14364

2 Artigo 10, Lei 9656/98.

3 CF/88. Artigo 196.

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* Flávia Tiezzi Cotini de Azevedo Sodré é advogada do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados.

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