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A Justiça tarda. E às vezes falha.

Não há que se falar em excesso de recursos, mas sim em excesso de processos. Não há que se falar em reforma do sistema processual, mas sim em uma reforma de cultura jurídica.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Atualizado em 29 de outubro de 2013 10:05

Em 02 de outubro de 2013 foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo e pelo site Consultor Jurídico artigo intitulado "Sistema processual é refém da chicana advocatícia", de autoria do professor Conrado Hübner Mendes, no qual o articulista, a partir de uma breve análise dos já batidos e rebatidos embargos infringentes opostos - e acertadamente recebidos, como já tivemos oportunidade de comentar1 - perante o STF na ação penal 470, expõe uma série de argumentos para propor uma reforma processual com a finalidade de corrigir aquilo que nomeia "cipoal de recursos" que levaria a um suposto "abuso do direito de defesa".

Dias depois, precisamente no dia 15 de outubro, foi divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça o Relatório Justiça em Números 20132, documento anualmente produzido pela instituição para aferir indicadores relativos ao funcionamento do Poder Judiciário brasileiro. Os dados impressionam: embora a produtividade dos juízes tenha aumentado em relação aos números de processos baixados, sentenças e decisões proferidas, houve 10% de aumento de casos novos, sendo que ocorreu um aumento de 2,6% no volume de casos pendentes.

Tornou-se lugar comum afirmar que a Justiça brasileira é morosa: todos têm uma história de um processo que "demorou demais para sair o resultado", ou conhecem uma empresa que "ficou anos respondendo por algo na Justiça". Isso para não falar nos casos criminais rumorosos insistentemente televisionados - que, não raro, são julgados mais rapidamente que os muitos anônimos que lotam as prateleiras dos cartórios judiciais -, sobre os quais se comenta "não haver motivo" para o acusado não ser preso imediatamente: "isso é coisa de advogado que fica recorrendo".

E especialmente na área criminal, os "recursos excessivos" costumam ser apontados - como o fez Conrado Hübner Mendes no artigo citado - como o grande vilão a prejudicar a celeridade processual, pois levariam a julgamentos desnecessária e demasiadamente demorados. Mas o que seria esse alegado "excesso" de recursos?

O Código de Processo Penal prevê que apenas um único recurso é cabível para cada decisão proferida pelo Poder Judiciário. Ou seja: é juridicamente impossível que uma mesma decisão venha a ser contestada pelos mesmos fundamentos mais de uma vez. Desta forma, no processo penal, temos que sentenças de mérito somente podem ser atacadas por apelação; decisões interlocutórias (e apenas algumas, determinadas por lei em rol taxativo), apenas por recurso em sentido estrito. Ultrapassada a etapa de questionar as decisões dos juízes singulares, as decisões dos tribunais de justiça ou tribunas regionais Federais somente serão reavaliadas por meio da limitada rediscussão do voto vencido pela via dos embargos infringentes. E, por fim, na etapa última de recursos aos tribunais superiores, poderão ser discutidas, no limite, a violação de lei Federal por meio de Recurso Especial ao STJ, ou afronta ao texto constitucional por Recurso Extraordinário ao STF.

Assim, insistimos: como falar em "excesso de recursos" quando para cada decisão possível existe apenas um único recurso cabível?

O segundo ponto cujo questionamento não se pode dispensar é o porquê de se buscar a celeridade processual, que parece ser perseguida mais com o intuito de se assegurar uma "resposta rápida" à sociedade do que de solucionar de uma vez por todas um problema que acomete a vida do cidadão acusado de crime.

Não existe ninguém mais genuinamente interessado no rápido deslinde do feito do que o próprio acusado: ser réu em processo criminal implica diversas consequências práticas na vida cotidiana, a começar pelo fato de a liberdade de ir e vir se tornar provisória a partir do momento em que o cidadão é investigado - basta lembrar que, salvo as hipóteses de prisão em flagrante, ninguém pode ser preso sem ordem judicial, o que somente pode ocorrer durante um inquérito policial ou um processo, o que significa que a qualquer momento a pessoa processada pode ter sua prisão decretada. Além disso, outras obrigações são legalmente impostas ao acusado de crime, tais como comparecer a todos os atos do processo, não se ausentar da comarca sem comunicar o juízo, sem mencionar a possibilidade existente desde 2011 de o juiz impor medidas cautelares, determinando cumulativamente outras obrigações. Tudo isso para não mencionar - novamente- os casos de grande repercussão, nos quais se somam a todos estes entraves para a vida pessoal do acusado violações graves à sua privacidade e intimidade, não raro estendidas a pessoas da sua família.

Como se vê, a celeridade processual é, acima de tudo, um direito do acusado, e não apenas da sociedade (qualquer que seja o termo que a defina, já que muitas vezes "audiência" é facilmente tomada como "sociedade").

Mas será que a morosidade do sistema de justiça é atribuível a um suposto "excesso" de recursos?

Problematizemos: se há muitos recursos, necessariamente há muitos processos, o que se confirma pelo resultado do relatório produzido pelo CNJ: atualmente, há 92,2 milhões de processos (somadas todas as áreas do Direito) em trâmite no país.

Portanto, indispensável pensar o porquê de tantos conflitos serem submetidos à apreciação do Poder Judiciário. Vejamos mais alguns números: segundo outra pesquisa do CNJ3, na Justiça Cível, os maiores litigantes são governos (tanto os municipais, quanto os estaduais e o federal são parte de 51% dos processos em trâmite), bancos (com 38% das demandas) e empresas de telefonia (parte em 6% das demandas).

Em relação à Justiça Criminal, só no Estado de São Paulo correm mais 500.00 novos processos criminais, de um total nacional de aproximadamente 1.500.000, ou seja, o correspondente a aproximadamente 35% de todos os novos processos criminais do país4. Aliás, é em São Paulo se concentra a maior parte da população carcerária, com mais de 190.000 presos (de um total nacional de 550.000), sendo que destes, quase 33% ainda aguardam julgamento5. Ora, este elevado número de processos criminais decorre de um elevado número de pessoas acusadas de crime: e onde está o controle de legalidade destas acusações?

Este controle de legalidade depende em grande medida do exercício do direito de defesa. Todavia, os inquéritos policiais (que, segundo muitos indicativos são majoritariamente instaurados por meio de prisão em flagrante, e não por investigação), são legalmente considerados procedimentos administrativos meramente investigativos, e por isso não comportam manifestações da defesa. E vale colocar a indagação: quantos processos criminais não poderiam ser evitados com uma reforma legal que assegurasse o direito de defesa já no inquérito policial, de modo a minimizar o risco de uma acusação injusta e/ou ilegal?

Na fase processual, ainda que constitucionalmente obrigatório o direito de defesa, o sistema de justiça ainda padece de falta de estrutura nas Defensorias Públicas e convênios de assistência judiciária com diversos problemas. A isso, some-se a pouca informatização - não é raro ainda encontrar nos fóruns criminais a sistematização de informações feita manualmente, anotando-se em fichas de papel o andamento de processos, isso para não mencionar o próprio procedimento de autuação dos processos físicos. Pode parecer um dado superficial, mas ao multiplicar o tempo despendido para cada um dos casos pelo número de processos existentes, a necessidade de modernização é um fator que não se pode excluir.

Pois bem. Tudo isso, somado a uma mentalidade de delegados, promotores e juízes fortemente influenciada por um discurso punitivista - que dificulta absolvições sumárias, substituições de penas de prisão por prestações alternativas, ou mesmo permite o absurdo de decretações de prisão fora dos parâmetros legais -, potencializa o risco de um julgamento injusto. E o remédio para o julgamento injusto é o recurso, justamente para assegurar que, se a Justiça tardar, que, ao menos, não falhe.

Logo, não procedem os argumentos do artigo citado: não há que se falar em excesso de recursos, mas sim em excesso de processos. Não há que se falar em reforma do sistema processual, mas sim em uma reforma de cultura jurídica. O raciocínio do autor, além de equivocado e falacioso, é ofensivo aos advogados e perigoso para a democracia.

Há uma série de problemas anteriores e ulteriores ao alegado "excesso de previsão legal" de recursos. O problema é o excesso de processos e de condenações, o que decorre muito mais provavelmente da falta de defesa nos primeiros momentos da persecução penal do que de seu excesso nas etapas finais. Reformar o sistema recursal por causa da morosidade do Poder Judiciário é atacar o efeito sem observar a causa. A reforma não deve ser do processo, mas sim de toda uma mentalidade que enxerga no direito de defesa e no trabalho dos advogados o problema do sistema de justiça, quando é exatamente o oposto: se a tal chicana interessa a alguma categoria do sistema de justiça, certamente não é à dos defensores de acusados de crimes.

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1 Texto disponível em: clique aqui.

2 Íntegra disponível em: clique aqui. Acesso em outubro de 2013.

3 Disponível em: clique aqui. Acesso em outubro de 2013.

4 De acordo com o Relatório de 2012 das estatísticas judiciárias produzido pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: clique aqui. Acesso em outubro de 2013.

5 De acordo com dados do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: clique aqui. Dados também disponíveis em: clique aqui. Acesso em outubro de 2013.

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* Roberto Podval é advogado do escritório Podval, Antun, Indalecio, Raffaini, Beraldo e Advogados





* Maíra Zapater é advogada e professora universitária.







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