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Corte Interamericana de Direitos Humanos - Reconhecimento tardio

Segundo Rui Barbosa, Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. E o reconhecimento tardio e parcial, o que é?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Atualizado em 21 de novembro de 2013 13:30

Segundo Rui Barbosa, Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. E o reconhecimento tardio e parcial, o que é?

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No último dia 14 de novembro terminou a audiência pública sobre o Caso Rodríguez Vera e outros versus Colômbia que, junto com um seminário internacional sobre o impacto das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), constitui a 49ª Sessão Extraordinária da CorteIDH realizada em Brasília durante a semana de 11 a 15 de novembro. Este evento nada mais é do que um período de trabalho necessário para o eficaz funcionamento do Tribunal que, atualmente, se reúne em quatro sessões ordinárias ao ano e duas extraordinárias.

A CorteIDH foi criada por decisão soberana dos países americanos para que possa complementar a competência jurisdicional das instituições nacionais de proteção aos direitos humanos. Assim, na qualidade de tribunal regional de proteção dos Direitos Humanos, a CorteIDH é uma instituição judicial autônoma que tem por objetivo aplicar e interpretar a Convención Americana de Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) - de 22 de noviembre de 1969 -, ratificado por Brasil en 1992. Exerce uma função contenciosa, que inclui a resolução de casos contenciosos e a supervisão do cumprimento de sentenças; uma função consultiva; e outra de emissão de medidas provisórias. Desde a primeira reunião realizada em junho 1979, a CorteIDH vem ampliando os temas objeto de sua apreciação para incluir questões como a discriminação sobre orientação sexual, falta de acesso à informação pública, os direitos dos povos indígenas, o direito propriedade da terra, entre outros.

No âmbito da competência contenciosa do Tribunal, o processo de elaboração de uma sentença compreende várias etapas de natureza escrita e a oral. A etapa chamada audiência pública é essencialmente oral e está composta pelos atos abaixo listados. Depois, é aberto o prazo para alegações escritas finais, com as quais os juízes integrantes da Corte decidirão sobre o caso.

I. Exposição dos fundamentos que levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a apresentar o caso perante a CorteIDH.

II. Oitiva de testemunhas e supostas vítimas.

III. Sustentação oral das partes que discorrerão sobre as exceções preliminares suscitadas e sobre o mérito do caso. Existe a possibilidade de uma réplica e uma tréplica.

IV. Observações finais da Comissão.

V. Perguntas finais realizadas pelos Juízes.

O processo em pauta nesta 49ª Sessão Extraordinária, conhecido como "Tomada e Retomada do Palácio de Justiça da Colômbia", foi apresentado a CorteIDH em 2012 e trata dos acontecimentos desencadeados pela invasão do Palácio de Justiça em Bogotá, especificamente da suposta desaparição de 12 pessoas, tortura de quatro e desaparição seguida de execução extrajudicial de uma. São objeto de julgamento o reconhecimento e esclarecimento da verdade dos fatos, o reconhecimento da responsabilidade estatal nos acontecimentos, a reparação a vítimas e familiares e a recuperação da memória histórica de Colombia.

Dos controvertidos fatos

Segundo informações do serviço de inteligência, o Estado havia reforçado a segurança em todas as dependências públicas, incluído a do Palácio de Justiça, porque sabia da existência de uma ameaça. Apesar disso, dias antes da ocupação, a segurança foi retirada. Aparentemente, facilitar a invasão foi a estratégia adotada pelo governo para eliminar os membros e simpatizantes do Movimento 19 de Abril (M19). Efetivamente, a ocupação do Palácio de Justiça ocorreu no dia 6 de novembro de 1985 quando guerrilheiros do M19 tomaram aproximadamente 350 reféns para forçar uma negociação com a Presidência da República e exigir que o presidente Belisario Betancour fosse julgado por "crimes contra o povo colombiano".

No dia seguinte, em uma operação que envolveu órgãos de inteligência e de segurança, as Forças Armadas e policiais, o Ministério da Defesa e a Presidência da República, o governo invadiu o tribunal. Durante a operação de desocupação, houve enfrentamentos entre a guerrilha e as Forças Armadas, com troca de tiros, ataque com tanques e incêndios. Além disso, de acordo ao apurado por comissões da Verdade, existem provas de que os civis desaparecidos foram levados à Casa Del Florero, o Museu da Independência, onde o exército identificava reféns e coordenava as ações de retomada. Como resultado, houve mais de cem mortes - o número exato até hoje não é conhecido, desaparições forçadas, torturas físicas e psicológicas.

Do pedido de perdão e suas facetas

No primeiro dia da audiência pública, representantes do Estado colombiano se puseram de pé, voltados para os familiares das vítimas presentes à sessão, para expressar seu respeito absoluto às vítimas da tomada do Palácio de Justiça e suas famílias, pedir-lhes perdão, reconhecer internacionalmente a responsabilidade estatal por parte dos fatos ocorridos e ratificar o compromisso com a busca da verdade e da justiça neste caso. Afirmaram que este compromisso não é retórico e que está plasmado na nova estratégia de defesa jurídica adotada pelo Estado, com o que esperam recuperar a confiança perdida das vítimas e seus familiares.

É pouco provável que este gesto cheio de simbolismo produza os efeitos antecipados pelo Estado de Colombia. Por um lado, os representantes das vítimas questionaram a boa fé do governo que reconhece tardia e parcialmente a sua responsabilidade, lembrando que "durante 28 anos, a posição do Estado valorizou a omissão, a ocultação, a obstaculização dos processos judiciais e a revitimização, perpetuando a impunidade". Afirmaram que o reconhecimento proposto é vazio, prevalecendo a negação e a ocultação da verdade, já que se desconhece que o desaparecimento foi coletivo e se chama de "erros" os atos praticados na retomada do Palácio da Justiça embora o propósito deliberado da ação empreendida pelo Estado tenha sido o de torturar, executar e ocultar provas dos desaparecimentos.

Por outro lado, embora tenha classificado como construtiva a posição atual da Colômbia, a CIDH destaca que o reconhecimento parcial formulado "não reflete o que efetivamente aconteceu com relação às vítimas de desaparecimento forçado nem o verdadeiro alcance da responsabilidade internacional por parte do Estado", na medida em que os acontecimentos de 1985 não são resultado de meras omissões, mas sim de atos "cometidos de forma coordenada e articulada por agentes pertencentes a diversos entes estatais" e, posteriormente, de "ações deliberadamente praticadas pelo Exército para encobrir tais fatos". Afirma que a nova resposta estatal continua sendo incompleta e insuficiente para atender aos imperativos da justiça e dos direitos humanos, pois falta incorporar medidas de esclarecimento, responsabilidade civil, penal e disciplinar, reparação e não repetição. Alerta, ademais, que é necessário determinar os efeitos jurídicos concretos do reconhecimento estatal que, por ser parcial, exclui a vários dos casos de vítimas de tortura.

Depois que o presidente da CorteIDH, Garcia Sayán, reforçou a ideia de que o reconhecimento de responsabilidade por parte do Estado deve ser valorizado como elemento positivo para se encontrar uma solução que chegue "à verdade, à justiça e à reparação das vítimas", audiência pública prosseguiu. E no seu transcurso se evidenciou a inconsistência do reconhecimento tardio e parcial apresentado pelo Estado. A defesa do Estado colombiano manteve as exceções preliminares apresentadas, sustentando que a elaboração de um informe único de admissibilidade e fundo pela CIDH afetou seu direito de defesa e o devido processo legal. Além disso, no mérito, insistiu em negar a maior parte dos fatos; em questionar a validade e a robustez das provas produzidas, refutando inclusive as conclusões da Comissão da Verdade por não se tratar de uma instancia judicial; e fundamentar a não aplicação das normas internacionais sobre desaparecimento forçado com base na teoria da responsabilidade penal individual e na teoria da incerteza.

Aparentemente, neste caso, o reconhecimento tardio e parcial não é reconhecimento, senão uma prolongação do impacto profundo que a incerteza, a injustiça, a impunidade, a falta de responsabilidade e de reparação tem sobre a vida das vítimas, de suas famílias e da própria sociedade. Esperemos que o direito, por meio do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, possa aplacar as feridas que há 28 anos estão abertas em Colômbia, reconstruindo a confiança perdida nas instituições estatais e fortalecendo a democracia.

Do possibilidades de um reconhecimento tardio em outro contexto

Com a questão do reconhecimento colombiano e suas inconsistências, vem à tona outro tipo de reconhecimento que está intimamente relacionado à iniciativa de realizar uma nova sessão extraordinária da CorteIDH no Brasil (a primeira ocorreu em 2006). Como foi explicado em nota publicada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 22 de outubro de 2013, o objetivo foi "tornar mais conhecida a jurisprudência e o modo de funcionamento da Corte e, assim, fortalecer a compreensão por parte dos operadores do Direito no Brasil sobre os mecanismos interamericanos relacionados a direitos humanos". Além da oportunidade para se observar o funcionamento do tribunal, a realização do 49º Período Extraordinário de Sessões no Brasil possibilita o "enriquecimento do diálogo jurisprudencial" graças à organização do seminário internacional sobre o impacto das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A necessidade de conscientizar e sensibilizar os povos das Américas, que são os fundadores e destinatários do trabalho realizado pela CorteIDH, revela nosso reconhecimento parcial e tardio do papel fundamental que exerce o Sistema Interamericano de Direitos Humanos para o fortalecimento e a defesa da democracia, do Estado de Direito, dos direitos humanos, da busca da verdade e do restabelecimento da memória histórica de nossos países. Assim como no caso colombiano, esperemos que a CorteIDH através do desempenho das suas funções, e valendo-se também dos esforços empreendidos em torno da 49ª Sessão Extraordinária, possa consolidar-se no Brasil e nas Américas. E, neste caso particular, participemos ativamente do processo de reconstrução - seja como cidadãos, seja como operadores do direito.

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* Fernanda Giorgi é advogada do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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