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A lei anticorrupção brasileira

Rafael Federici

Inspirada em normas internacionais, a nova lei dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de determinados atos ilícitos contra a administração pública.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Atualizado às 07:41

Em 29 de janeiro de 2014 entrou em vigor a lei 12.846 de 1º de agosto de 2013, popularmente conhecida como "lei anticorrupção". Inspirada em normas internacionais, a nova lei dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de determinados atos ilícitos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Alcance

A nova lei possui alcance amplo e os seus efeitos podem atingir quaisquer espécies de sociedade, incluindo as sociedades estrangeiras e as sociedades não personificadas, como as informais. Da mesma forma, seus efeitos podem atingir as pessoas naturais autoras, coautoras ou partícipes do ato ilícito, ainda que não ocupem cargos de administração na pessoa jurídica envolvida.

Responsabilidade Objetiva

A espécie de responsabilidade imposta para as pessoas jurídicas, no contexto da lei, é a objetiva - em sintonia com a regra do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil Brasileiro -, a qual prescinde de comprovação de dolo ou culpa, bastando a verificação do ato ilícito e do respectivo autor.

Por outro lado, a lei deixa claro que a responsabilidade específica dos administradores e dirigentes das sociedades será aferida na medida da sua culpabilidade, ou seja, a lei não abre mão da avaliação de culpa. Resta saber se o legislador pretendeu estabelecer, para estas pessoas, um tratamento de responsabilidade subjetiva clássica - que depende de prova da culpa, fato, resultado e nexo causal - ou apenas uma regra para gradação de uma culpa objetiva. A primeira hipótese parece ser a mais lógica diante do parágrafo primeiro do artigo 3º da lei anticorrupção, que esclarece que a pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais.

Fato é que, ainda que restrita às pessoas jurídicas, a fixação da responsabilidade objetiva implica um ponto de extrema atenção, uma vez que as empresas não podem controlar todos os seus empregados o tempo inteiro. Como a lei não exige a necessidade de prova de culpa da pessoa jurídica, a empresa será responsabilizada ainda que não tenha concordado, autorizado ou tenha tido ciência prévia do ato ilícito praticado por um gestor ou empregado.

Operações Societárias

A nova lei produz efeitos relevantes nas operações societárias, ao estabelecer que subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. Embora a expressão "alteração contratual" represente um conceito genérico - e não aplicável, por exemplo, às sociedades anônimas -, fica evidente que o legislador buscou atacar possíveis tentativas de afastamento de responsabilidade através de subterfúgios óbvios, como a alteração do quadro societário ou da administração.

Fato interessante é a limitação de responsabilidade que a lei cria para certas operações societárias, ao estabelecer no artigo 4º, §1º que nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados. Portanto, é possível concluir que a lei limitou a responsabilidade da sucessora com vistas a não interferir demasiadamente na dinâmica econômico-empresarial. Não fosse isso, os efeitos da lei poderiam provocar um refreamento dos movimentos societários naturais de um mundo globalizado e disputado pelos grupos econômicos consolidados.

Ainda como exemplo de seu alcance amplo, o §2º do mesmo artigo 4º estabelece a responsabilidade solidária das sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas pela prática de atos ilícitos previstos na lei anticorrupção. Para esta situação, o texto legal também limita a responsabilidade ao pagamento de multa e reparação integral do dano causado, porém não limita a reparação integral do dano ao valor do patrimônio transferido, tal como consta no artigo transcrito acima.

Da mesma forma o citado §2º não reproduz o trecho do §1º que imuniza os beneficiários da regra de sofrerem outras sanções relacionadas a atos e fatos ocorridos antes das operações societárias lá indicadas. Resta saber se o legislador pretendeu dar propositadamente um tratamento distinto a essas situações ou apenas falhou na técnica de redação destes dispositivos legais.

Ainda no tocante ao §2º do artigo 4º, parece compreensível a responsabilização solidária da controladora (por atos da controlada), levando-se em consideração o seu poder de influência e principalmente o espírito da responsabilidade objetiva sob o qual a nova lei foi concebida. No entanto, essa avaliação não parece tão óbvia quando tratamos da responsabilidade da controlada (por atos da controladora) e soa mesmo injusta no caso da responsabilidade de uma sociedade por atos de suas coligadas. Essa distorção é mais visível no cenário dos grandes grupos econômicos, que possuem investimentos em múltiplos e distintos segmentos da economia através de diferentes sociedades (coligadas entre si), porém sem proximidade entre as respectivas gestões.

Assim, se por um lado o legislador parece ter procurado não interferir demasiadamente na dinâmica econômico-empresarial ao conceber a limitação de responsabilidade constante do §1º do artigo 4º, o mesmo não parece ter ocorrido com a sistemática do §2º do mesmo artigo.

Tipificação dos Atos Ilícitos

Os atos ilícitos definidos na lei anticorrupção são todos aqueles que atentem contra o patrimônio nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

Sanções Administrativas

Na esfera administrativa a lei 12.846/13 estabelece como sanção uma multa que pode variar de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos. A multa nunca será inferior à vantagem auferida quando for possível sua estimação, e, caso não seja possível tal estimação, a multa será de R$ 6 mil a R$ 60 milhões.

A nova lei prevê, ainda, a publicação extraordinária da decisão condenatória, a expensas da pessoa jurídica. Essa publicação deverá ser feita em veículos de comunicação de grande circulação na área da infração e na área de atuação da pessoa jurídica.

Tais sanções poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente e não excluem a obrigação de reparação integral do dano causado.

A lei anticorrupção estabelece alguns parâmetros ou condicionantes para a aplicação das sanções. São eles:

(i) a gravidade da infração;
(ii) a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;
(iii) a consumação ou não da infração;
(iv) o grau de lesão ou perigo de lesão;
(v) o efeito negativo produzido pela infração;
(vi) a situação econômica do infrator;
(vii) a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações;
(viii) a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;
(ix) o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados.

Merece ser destacado o item (viii) acima, uma vez que incentiva as empresas a adotarem, manterem ativos e aplicarem os mecanismos, procedimentos e regramentos lá descritos. Tal dispositivo da lei deverá ser regulamentado pelo Poder Executivo Federal.

Processo Administrativo

A competência para a instauração e o julgamento do processo administrativo para apuração de responsabilidade caberá à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.

No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria Geral da União terá competência concorrente para instaurar processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas ou para avocar os processos instaurados com fundamento na lei anticorrupção, para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento.

O processo administrativo será conduzido por uma comissão designada pela autoridade competente e será composta de no mínimo dois servidores estáveis. O prazo de defesa é de 30 dias da intimação e o processo deverá ser concluído em até 180 dias de sua instauração. Durante o processo administrativo, a autoridade competente poderá requerer medidas judiciais que julgue necessárias para a investigação e o processamento das infrações, inclusive de busca e apreensão.

Como a responsabilidade da pessoa jurídica definida em lei é da espécie objetiva, a instauração de processo administrativo não prejudica a aplicação imediata das sanções estabelecidas na lei e descritas acima.

Desconsideração da Personalidade Jurídica

Em sintonia com artigo 50 do Código Civil Brasileiro, a lei 12.846/13 estabelece que a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada semre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa. Portanto, os sócios sem poderes de administração que de fato não tenham concorrido para os atos ilícitos estarão livres das consequências previstas em lei.

Acordo de Leniência

A nova lei regula a figura do acordo de leniência, que poderá ser celebrado entre a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública competente e a pessoa jurídica que incorrer em tais atos, desde que esta venha a colaborar efetivamente nas investigações.

O acordo de leniência não evitará a responsabilidade da pessoa jurídica quanto à obrigação de reparação integral do dano causado, mas, por outro lado, produzirá os seguintes efeitos:

  • a multa aplicável terá o seu valor reduzido em até 2/3;
  • a pessoa jurídica ficará isenta da publicação extraordinária em meio de comunicação de massa;
  • a pessoa jurídica não estará impedida de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público

Se a pessoa jurídica envolvida fizer parte de um grupo econômico composto de várias empresas, estas últimas poderão se beneficiar dos efeitos do acordo de leniência, desde que aceitem firmar o documento em conjunto.

Não há dúvida de que o legislador pretende, com a figura do acordo de leniência, incentivar a denúncia espontânea dos atos ilícitos, tanto é que estende a abrangência do acordo de leniência também aos atos ilícitos tipificados na lei de licitações (lei 8.666/93) com vistas à isenção ou atenuação das penalidades descritas nos artigos 86 a 88 desta última lei. Portanto, o acordo de leniência poderá também minimizar sanções como a multa pecuniária por descumprimento de contrato administrativo, a suspensão do direito de licitar e a declaração de inidoneidade.

Para que possa ter o direito a um acordo de leniência, a lei 12.846/13 exige que a pessoa jurídica colabore nas investigações, sendo requisito essencial que esta colaboração resulte (i) a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e (ii) a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração. E mais, a lei exige que:

  • a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
  • a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo; e
  • a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

A rejeição de uma proposta de acordo de leniência não implicará o reconhecimento da prática do ato ilícito pela pessoa jurídica investigada. Vale destacar, também, que o descumprimento do acordo de leniência impedirá a pessoa jurídica de celebrar um novo acordo pelo prazo de 3 anos contados do conhecimento do descumprimento pela autoridade.

Responsabilização Judicial

Ainda em decorrência da prática dos atos ilícitos previstos na lei anticorrupção e descritos mais acima, poderá a pessoa jurídica ser responsabilizada na esfera judicial, através de ação ajuizada pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, e o Ministério Público. A ação deverá observar o rito da ação civil pública prevista na lei 7.347/85.

As sanções estabelecidas na lei 12.846/13 para a esfera judicial são:

  • perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
  • suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
  • dissolução compulsória da pessoa jurídica;
  • proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de um e máximo de cinco anos.

A dissolução compulsória mencionada acima será determinada quando ficar comprovado (i) ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou (ii) ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.

Vale destacar que o Ministério Público poderá requerer judicialmente a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano causado.

Cadastro Nacional

Por meio da nova lei foi criado o Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP, que reunirá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base na lei 12.846/13. O CNEP incluirá também os acordos de leniência celebrados, mas tal registro será excluído uma vez que o acordo seja cumprimento regularmente.

Prescrição

Prescrevem em 5 anos as infrações previstas na lei anticorrupção, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado. Na esfera administrativa ou judicial, a prescrição será interrompida com a instauração de processo que tenha por objeto a apuração da infração.

Competências Preservadas

Importante esclarecer que o disposto na lei 12.846/13 não exclui as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica.

No mesmo sentido, a aplicação das sanções previstas na lei anticorrupção não afetam os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de (i) ato de improbidade administrativa nos termos da lei 8.429/92 e (ii) atos ilícitos alcançados pela lei 8.666/93, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC instituído pela lei 12.462/11.

São estes os pontos relevantes dessa lei anticorrupção Brasileira que inaugura no cenário jurídico nacional uma fase de incentivo à ética e ao aperfeiçoamento das práticas empresariais, em sintonia com o que é esperado pela comunidade internacional. As empresas certamente deverão redobrar sua atenção diante da regra de responsabilidade civil objetiva e do valor que a nova lei dá aos procedimentos internos de compliance.

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* Rafael Federici é advogado do escritório Comparato, Nunes, Federici & Pimentel Advogados.







 

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