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Alteração do quadro societário de empresa locatária e seus efeitos na fiança

A alteração do quadro societário da pessoa jurídica locatária e afiançada desvirtua a garantia intuitu personae prestada no contrato celebrado entre as partes.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Atualizado às 08:27

A rapidez com que as empresas sofrem reestruturação nos dias atuais é notória e nem sempre os negócios jurídicos adjacentes à atividade empresária e em vigor à época da reestruturação passam por uma atualização necessária para que reflitam com precisão seus novos sujeitos de direitos e obrigações.

Em muitos casos, os contratos de locação continuam em vigor após completa alteração do quadro societário da empresa locatária. Todos os termos permanecem inalterados, incluindo as garantias, mas, apesar de ser, na aparência, as mesmas partes, em realidade, a locatária mudou. Neste caso, como fica a figura do fiador, que prestou fiança à empresa locatária em razão de ter relação de confiança com seus sócios, que, ante às mudanças, não mais figuram como contratantes?

Tem-se que a fiança é uma garantia pessoal, já que expressa obrigação que alguém assume, ao garantir o cumprimento de obrigação alheia. Ou seja, caso o devedor não o faça, o fiador garante o cumprimento. A garantia fidejussória é, portanto, uma garantia pessoal, uma fiança dada por alguém, que se compromete pessoalmente a cumprir as obrigações contraídas num contrato. Logo, tem sentido distinto da garantia real, na qual um bem é dado como caução. Sendo assim, pode-se dizer que a fiança é um contrato intuitu personae.

Por essa razão que o entendimento moderno e majoritário é o de que é possível o fiador exonerar-se do encargo quando há troca no quadro societário da empresa locatária e afiançada. Tal entendimento encontra reflexo na súmula 214 do STJ (O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu) que, por sua vez, está coerente com o disposto no artigo 819 do CC/02 (A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva).

Ora, se a fiança é um contrato acessório absolutamente intuitu personae, não pode o garantidor ficar à mercê do ônus de afiançar empresa com a qual não mais tem relação de confiança alguma. O STJ não tem outro entendimento:

"1. É cabível a exoneração da garantia fidejussória prestada à sociedade após a retirada da sócia-fiadora, em face da quebra da affectio societatis. 2. Tendo a sócia fiadora e seu cônjuge notificado o locador de sua pretensão de exoneração do pacto fidejussório, em razão da sua retirada da sociedade que afiançaram, direito lhes assiste de se verem exonerados da obrigação, uma vez que o contrato fidejussório é intuitu personae, sendo irrelevante, no caso, que o contrato locatício tenha sido estipulado por prazo determinado e ainda esteja em vigor. 3. Em se cuidando de contrato de natureza complexa em que a fiança pactuada o é enquanto preservado o contrato societário, faz-se evidente que a resolução de qualquer dos contratos implica a resolução do remanescente, mormente se a essência complexa do contrato foi aceita pelo locador, na exata medida em que locou o imóvel à pessoa jurídica, sendo fiadora uma de suas sócias. 4. Recurso provido".

Também do STJ extrai-se que, quando não há confiança, não há como manter a fiança:

"Nos termos do art. 1500 do CC/02, o fiador tem o direito de se desligar da fiança, se esta não mais lhe convém, como no caso, prestada em razão dos antigos integrantes da firma. Com a retirada deles, non extenditur fidejusso".

Sendo assim, se a fiança, em face de sua natureza, não se estende de pessoa a pessoa, pois se trata de obrigação personalíssima, havendo relação pessoal direta entre o afiançado e fiadores. Qualquer mudança significativa no quadro societário de empresa afiançada desvirtua o instituto da fiança, pois, do contrário, estaríamos emprestando interpretação extensiva ao negócio.

A alteração do quadro societário da pessoa jurídica locatária e afiançada desvirtua completamente a garantia intuitu personae prestada no contrato celebrado entre as partes, na medida em que a fidúcia lançada no instrumento é de ordem pessoal, dada em função da pessoa afiançada. Portanto, a partir do momento em que os sócios originalmente afiançados se retiraram da sociedade, a fiança para eles prestada perdeu efeito porque desnaturada a relação ensejadora da garantia.

Não é outra a razão que leva locadores a disporem previsões contratuais e uma série de barreiras no contrato de locação, no que diz respeito à cessão do capital social, servindo de exemplo, a estipulação de obrigatório aviso ou pedido de anuência ao locador ou, ainda, a previsão costumeira nas locações em shopping centers, a cobrança de valores semelhantes, na cessão da participação social, àqueles cobrados em casos de singelas cessões do contrato de locação propriamente dito.

Pretender-se cobrar de fiadores que não anuíram, significaria dizer que eles seriam instados a pagamento que jamais prometeram, em imediata infração aos artigos 818 e 819 do CC/02 e à súmula 214 do STJ.

Nossos tribunais estão atentos à questão e julgando as controvérsias de acordo com a natureza do instituto da fiança, com a lei e com o entendimento majoritário acima esposado. Veja brilhante decisão liminar nos autos 0013344-31.2012.8.26.0001, em trâmite perante o Foro Regional de Santana/SP, em que foi concedida a antecipação de tutela para preservação dos bens dos fiadores que poderiam ser constritos por força de fiança dada a empresa: "Por ser o contrato acessório de fiança intuitu personae e tendo em vista que a sociedade afiançada sofreu alteração com a troca dos sócios, tem-se a verossimilhança do quanto alegado. O perigo de dano irreparável repousa na possibilidade dos autores virem a ser cobrados por dívida que não garantirão mais".

Da mesma forma, veja decisão exarada nos autos da apelação cível 826.966-9, de relatoria do ilustre desembargador Edson Vidal Pinto:

"A fiança prestada pelos sócios originários da empresa devedora, induvidosamente, deveu-se às peculiaridades próprias dos contratos (capital de giro e cheque especial), posto que foram celebrados entre o banco e a pessoa jurídica constituída pelos sócios fiadores com prevalência de caráter pessoal, pelo interesse mútuo entre a empresa e seus garantes. E uma vez ocorrida a alteração do quadro social da devedora não mais subsiste o gravame da fiança em desfavor dos sócios retirantes. [.] Não se pode olvidar, outrossim, que os sócios retirantes não têm qualquer vinculação com a pessoa jurídica dirigida pelos novos sócios, não se prestando aquela para dar amparo econômico aos mesmos e nem às suas famílias. Logo, não tem sentido algum pretender que os ex-sócios permaneçam na condição de garantes-fiadores de um contrato que não mais lhe dizem respeito".

Dessa forma, em havendo mudança do quadro societário, com a saída de sócio, a relação existente de confiança deixa de existir, de rigor a exoneração do fiador.

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* Gabrielle Rossa é advogada do escritório Rayes Advogados Associados.

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