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A vista de meu ponto:50 anos da revolução de 1964

Memórias de 1969: emoções que jamais dissipam.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Atualizado em 2 de abril de 2014 15:55

Nasci em 1957, portanto em 1969 contava 12 anos de idade.

Quando ouvia o rádio, após a revolução de 64, tremia quando soava a música do Repórter Esso. Mal sabia que eu (o thetano) trazia em minha memória figuras de imagem de 70 milhões de anos, mas isso é uma história para ser explicitada adiante.

Meu pai é o primogênito de dez irmãos. De alguma forma durante muitos anos foi uma referência para os demais irmãos, filhos, sobrinhos, primos e outros.

Vivíamos um momento singular, depois de uma vida modesta de professor e diretor de escola primária, trabalhava ele como advogado na prefeitura de Diadema. Eram tempos de alegria, morávamos em Águas de Lindóia, um paraíso incrustado na Serra da Mantiqueira, em um vale de clima ameno, de água maravilhosa e de paisagem encantadora.

Ele comprou um sítio, para mim então uma enorme fazenda, pouco mais de oito alqueires de sonhos, projetos, descobertas e integração com a natureza. Dois lagos imensos com carpas em abundância, onde passava horas a pescar. Um alambique, onde amarrei meu primeiro fogo quando a destilada escorria ainda quente e com baixo teor alcoólico, mas com alto poder de embriagar.

Caçar passarinhos, retirar de seus ninhos e criá-los com amor e dedicação, ao ponto de abrir a porta da gaiola e retornarem para a mesma, até que, naturalmente, aparecesse alguma sedutora fêmea e ela o fizesse acompanhar era um dos prazeres além de uma bicicleta nova com a qual apostava corridas em uma avenida imensa, jogar bola, acompanhar a campanha do ALEC - Águas de Lindóia Esporte Clube, mas conhecido por Amigos Leais Eternos Companheiros, campeão das estâncias hidrominerais, de carona, sem dinheiro, conformavam um universo idílico.

Foi o primeiro ano que deixei a pressão de também ser o primogênito e ter de ser o exemplo da família para todos os primos, primas e irmãos e Deus sabe lá mais o que...

Minha mãe, como a mãe de Mauro Rasi, utilizava as mesmas expressões. Eu e meu irmão José Olímpio, dois anos mais novo, saiamos pela manhã e retornávamos à noite, almoçando sabe-se lá onde e esfomeados buscando um jantar quando vinha a locução imperdoável de minha mãe: Galo onde canta janta! De imediato pensava que um dia teria minha casa e não mais suportaria tal humilhação. Besteira de uma criança que não conseguia sequer entender a alegria dela em ver os filhos livres, cheios de saúde, vivendo a vida em seu extremo de felicidade.

Há uma cena singular que expressa tal período de inocência que vem a ser quebrada com o incidente que mais adiante narro.

Era um domingo e meu pai me chamou para conversar no escritório. Ele, com a elegância de sempre, deitado no sofá, de chapéu, botas feitas à mão e exclusivas, perora: - Menino, sua mãe disse que está desesperada com você. Diz que você não estuda, somente anda de bicicleta, pesca, joga bola e fica pela rua. Enquanto ele falava minha mãe estava escondida por trás da porta ouvindo a conversa.

A imagem de meu pai de então, naquele escritório que se me afigurava imenso, era de um ícone de cultura e erudição. Estudou oito anos latim, interno no Colégio Diocesano em Campinas, afeito a leitura dos clássicos e filósofos, dado a escrever e publicar seus artigos. A biblioteca imensa no escritório, com livros lindos e reluzentes, que até parece que jamais foram utilizados. Ciente de quantos discursos escreveu para políticos, enfim, era uma responsabilidade enorme para mim....

Prossegue, ralha e afirma: - Sua mãe quer que eu te interne no Colégio Diocesano em Campinhas.

Ouço a respiração de alívio de minha mãe. Para ela estava certo, seria internado o filho que até então era um excelente aluno e de repente tornara-se um ser desconhecido.

Ela sempre afirmava que bom filho era o Max Tadeu, filho de uma irmã de meu pai. Ele sim era educado, um menino fino, de bons modos, que comia moderadamente à mesa, não respondia (sei lá o que isso significa????) enquanto eu e meu irmão éramos praticamente uns selvagens, sem modos adequados, comíamos rapidamente e muitas vezes com às mãos. Nos apresentávamos sempre meio sujos de brincar na terra. Coitado do Max Tadeu, tínhamos verdadeiro ódio do infeliz. Quantas surras eu e meu irmão demos nele por causa das comparações de minha mãe. Ele, sem irmãos, adorava ir para o sítio, conviver conosco e com a nossa liberdade, mas minha mãe em suas comparações obrigava-nos a surrar o primo.

Vem a proposta final de meu pai: - Você quer ir para o Colégio interno ou quer ganhar um cavalo?

A resposta imediata: - Quero o cavalo. Se o senhor me internar somente vai ter prejuízo. Eu fujo amanhã mesmo e volto para casa. Me dá logo o cavalo.

Minha mãe na altura dos acontecimentos passa a chorar e a bradar: - Um filho que não estuda e um pai irresponsável. O que é que faço de minha vida e mais aquela lenga lenga de mãe. Como vou educar esse menino? Sem ela talvez não estudasse tanto e com tanto afinco no futuro.

Sempre fui grato a ela. Ganhei uma égua e de quebra uma charrete linda...

Entretanto, a recordação que marcou profundamente meu ser também ocorreu em uma manhã de outro domingo. Como disse, meu pai é o mais velho de dez irmãos. Naquela manhã saímos eu e o irmão caçula de meu pai para abastecer um carro. Ele iria viajar e fora até Águas de Lindóia para resolver umas questões. Ele passou a contar o que ocorria.

Meu pai fora denunciado no 'SNI', depois se soube que outra era a agência de investigação, estava sendo investigado pela Aeronáutica em Cumbica e seria interrogado no dia seguinte. Ele estava ali para discutir o que iriam fazer. Disse-me que outro irmão havia providenciado o dinheiro, e que se as ameaças de sumirem com meu pai viessem a se consolidar, ele iria matar a pessoa que denunciou meu pai e fugir para o exterior. Esclareceu que já estava tudo acertado.

Eu fiquei inicialmente perplexo, tomei responsabilidade, de pronto disse que eu iria junto matar a pessoa. Que era o primogênito e tinha responsabilidades para com a família, como sempre me ensinaram. Uma força interior imensa veio com segurança e tranquilidade e decidi que iria participar da execução do delator.

Meu tio serenou-me, disse que ficasse tranquilo, que tudo seria efetivado, que eu era muito jovem para tamanha empreitada. Manifestou sua felicidade em verificar o meu caráter.

Nem meu pai sumiu, nem foi morto o delator. Sumiu a minha inocência e morreu em mim um pouco a beleza da vida.

Eram anos de inocência, de pureza, tudo maculado pela ameaça de perder meu pai. Aquele homem que quando chegava do trabalho nos finais de semana era o alento de nossas vidas; aqueles pêssegos enormes, o pão sovado, tantos outros gestos de afeto e carinho, a certeza de que no dia seguinte por volta de 4 horas da madrugada iríamos ver a aurora juntos a caminho do sítio onde estavam todas as aventuras que uma criança podia sonhar. Como poderiam querer sumir ou matar meu pai era algo que eu não conseguia compreender.

Meu pai abandonou tudo e fomos morar em Cajuru, numa voluntária clandestinidade. Em 1970, meu irmão soltou um rojão quando a Itália marcou um gol e apanhou tanto de meu pai que pensei que ele iria desmaiar. Meu pai dizia, enquanto batia, que estava escondido naquele lugar, com medo de que algo acontecesse conosco e que o rojão poderia causar imensos problemas.

Em uma palestra que ministrei em Franca, na UNESP, tive a oportunidade de dizer de nossa vida em Cajuru, quando discorria a respeito de Direitos Humanos.

Meu pai nunca voltou a ser o mesmo. Foi-se aquela alegria vivaz de seu semblante e restou impressa em sua alma a sensação de que em algum momento poderá ser alvejado. Suas ideias vez por outra estão confusas, como se ainda hoje estivesse sob a ameaça de não poder rever seus filhos... Vive afastado de todos, um em exílio voluntário desnecessário.

O tio que iria liquidar o delator foi o único vereador pelo PT em Indaiatuba, naquela gestão de 6 anos, presidente da Câmara nos dois primeiros e nos dois últimos anos. O tio financiador hoje é Juiz Federal, depois de aposentar como Procurador do Estado de São Paulo.

Eu sou, ainda, depois de tantos bancos escolares de graduação, especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado, cursos e mais cursos, e mais de vinte anos de regressão, apenas aquela criança assustada, à procura de um lar seguro, onde irei morar, onde serei amado e querido, desejoso de uma família imensa, admirado por meus filhos como admirei meu pai por sua luta em favor de sua família, e ainda com o sincero desejo de matar em mim aquele que delatou (matou) meu pai.

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* José Sebastião Fagundes Cunha é desembargador do TJ/PR e pós-PhD em Direito pelo Centro de Estudos Sociais - CES da Universidade de Coimbra.

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