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Sim, a publicidade voltada às crianças é abusiva e ilegal

A resolução 163 do Conanda apresenta-se, portanto, como um marco histórico e paradigmático, uma vez que explicita o dever do aplicador da Constituição Federal, do ECA e do CDC de coibir a publicidade infantil.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Atualizado em 24 de junho de 2014 13:50

No dia 4/4/14 foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução 163 do Conanda - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que consolida o entendimento da abusividade do direcionamento às crianças da publicidade e da comunicação mercadológica e estabelece princípios dessas práticas aos adolescentes.

Como apontado em recente artigo publicado aqui no Migalhas1, muito se tem discutido quanto à Resolução. Entretanto, pouco se tem compreendido acerca de seus efeitos, muito em função do desconhecimento do funcionamento do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, dos preceitos do ECA e da Doutrina de Proteção Integral, garantias previstas a esses indivíduos pela norma da Prioridade Absoluta assegurada no artigo 227 da CF.

Inicialmente, cumpre destacar que, ao contrário do que se pensa, a resolução 163 declarou a abusividade somente de publicidade e comunicação mercadológica dirigida à criança, enquanto que para os adolescentes, pessoa "entre doze e dezoito anos de idade" (ECA, artigo 2º), estabeleceu apenas os princípios para a atividade. Logo, é equivocada a comparação da abusividade da publicidade infantil estabelecida na Resolução com o direito político de voto exercido por adolescentes maiores de 16 anos.

Inclusive, essa diferenciação entre a publicidade que fala diretamente com a criança daquela que se dirige ao adolescente realizada pela Resolução do Conanda, está em ampla consonância com o princípio do envolving capacities da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que garante tratamentos distintos em função da peculiaridade de cada fase de desenvolvimento da pessoa até 18 anos.

Superando essa primeira observação, deve-se esclarecer e informar acerca da competência do Conanda para editar tal Resolução. Criado pela lei 8.242 de 12 de outubro de 1991, o Conanda é um órgão colegiado, vinculado administrativamente à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e formado paritariamente entre representantes dos ministérios do governo federal e da sociedade civil organizada ligados à promoção e proteção dos direitos da criança.

Advindo de política constitucionalmente estabelecida, atua como instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência, fiscalizando o cumprimento e a aplicação eficaz das normas do ECA.

Logo, dentro de suas competências e legitimidade democrática para "elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução", conforme previsto em sua lei de criação, o Conselho possui o dever de fiscalizar e regular práticas, especialmente por meio de Resoluções, que violem quaisquer direitos da criança e do adolescente no Brasil.

Dentre tais práticas está a publicidade infantil, a qual comprovadamente se aproveita da vulnerabilidade da criança para persuadi-la ao consumo de um produto ou serviço, desrespeitando sua condição de indivíduo em desenvolvimento e atentando contra seu direito à inviolabilidade física, psíquica e moral, além de contribuir para o aumento de problemas sociais como a obesidade infantil, a violência, a erotização precoce.

Destaca-se, neste âmbito, o parecer do Conselho Federal de Psicologia2 que, dentre outros argumentos para restrição da publicidade infantil, apontou que até os 12 anos de idade, a criança tem dificuldade em identificar a publicidade e separá-la do conteúdo normal de programação e, ainda, não compreende o caráter persuasivo dessa mensagem comercial. Acerca de tais problemas e consequências da publicidade infantil, uma vasta literatura nacional e internacional pode ser encontrada na Biblioteca online do Instituto Alana3 e no Documentário 'Criança, a alma do Negócio'4.

Destaca-se, entretanto, que o referido texto publicado no Migalhas5 acertou em afirmar que "em momento algum a resolução menciona que tal publicidade estaria proibida no Brasil'. De fato, a Resolução do Conanda não proibiu o direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica ao público infantil, nem estabeleceu sanções ou os órgãos encarregados de sua fiscalização.

De forma legítima e amparado na legalidade, o Conanda consagrou a abusividade e, portanto, a ilegalidade de tais práticas, por meio de uma interpretação sistemática realizada entre as normas de proteção dos direitos da criança previstas no artigo 227 da Constituição Federal, nos artigos 3º, 4º, 5º, 7º, 15, 17, 18 e tantos outros do ECA e, igualmente, nos artigos 36 e 37 do CDC.

A resolução 163 estabeleceu normativas claras para o aplicador da lei e órgãos fiscalizadores do SNDC - Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, para o cumprimento da legislação já existente de proteção, com absoluta prioridade, do melhor interesse da criança em detrimento de qualquer outro interesse, inclusive o comercial.

Logo, a ilegalidade da publicidade infantil e sua consequente proibição, explicitada pelo Conanda, fundamentam-se no próprio CDC, especificamente nas disposições do parágrafo 2º do artigo 37, que estabelece - com o uso da expressão "dentre outras" -, um rol exemplificativo de publicidades abusivas, destacando aquela que "se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança". E a publicidade que se dirige diretamente a criança não se aproveita, sempre, de sua deficiência de julgamento e experiência?

Certamente. E foi justamente isso que a Resolução deixou claro, harmonizando o entendimento de diversos juristas e especialistas no desenvolvimento infantil, visando a correta aplicação das medidas protetivas da criança nesta desigual relação de consumo estabelecida pela publicidade direcionada a ela, a qual teima, ilegalmente, em desconsiderá-la como indivíduo em desenvolvimento e, portanto, hipervulnerável e carente de proteção e cuidado.

Importante, ainda, destacar o poder vinculante da Resolução 163, uma vez que se apresenta como ato normativo previsto constitucionalmente e advindo de órgão legalmente constituído com atribuição e competência clara para proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Dessa forma, seu cumprimento integral é obrigatório e deve ser observado por todos os agentes estatais e sociais, especialmente os aplicadores da lei.

Por fim, cabe comentar o entendimento acerca do artigo 79 do ECA que supostamente possibilitaria a veiculação de publicidade infantil. Ao contrário do que se tenta argumentar, o silêncio do artigo 79 acerca do fenômeno da publicidade e da comunicação mercadológica dirigida ao público infantil, não significa seu aval legal. Ao contrário disso, o intuito do legislador foi apenas elencar exemplos claros de publicidades que são reguladas e restringidas inclusive para o público adulto - conforme a própria Constituição e a lei Federal 9.294 de 1996 -, possibilitando que outras formas de anúncios que desrespeitam "os valores éticos e sociais da pessoa e da família" possam igualmente ser restringidos, como a própria publicidade infantil .

Se outro entendimento fosse adotado, o fato do artigo 79 somente versar sobre revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil seria motivo para justificar a presença de publicidade de álcool, tabaco, armas e munições em canais televisivos infantis ou no intervalo de programas para adolescentes, o que seria ilógico e antijurídico.

A resolução 163 do Conanda apresenta-se, portanto, como um marco histórico e paradigmático, uma vez que explicita o dever do aplicador da Constituição Federal, do ECA e do CDC de coibir a publicidade e a comunicação mercadológica que abusa da hipervulnarabilidade da criança brasileira e viola, de forma clara, os direitos legalmente assegurados e a ética socialmente compartilhada de cuidado da infância com absoluta prioridade.

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/202249/a-recente-resolucao-do-conanda-e-a-publicidade-de-produtos-para-criancas

2 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/10/cartilha_publicidade_infantil.pd0f

3 https://defesa.alana.org.br/biblioteca4

4 https://www.youtube.com/watch?v=ur9lIf4RaZ4

5https://www.migalhas.com.br/depeso/202249/a-recente-resolucao-do-conanda-e-a-publicidade-de-produtos-para-criancas

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* Isabella Henriques é diretora do Instituto Alana.

 

 

 

 

 

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* Pedro Hartung é advogado do Instituto Alana.

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