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O aproveitamento de cadáveres para estudo de anatomia

José Adriano Marrey Neto

A consulta formulada. Por intermédio de dileto amigo, o Exmo. Sr. Prof. Dr. Victor Pereira, M. D. Professor Pleno de Medicina-Legal e Ética Médica, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, honra-me a veneranda Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, através de seu ilustre Diretor Clínico, o Exmo. Sr. Prof. Dr. José Mandia Netto e do não menos ilustre Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o Exmo. Sr. Prof. Dr. João Fava, com consulta sobre o aproveitamento de cadáveres para os estudos de Anatomia.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Atualizado às 08:23


O aproveitamento de cadáveres para estudo de Anatomia

José Adriano Marrey Neto*

1. A consulta formulada; 2. Apresentação do tema; 3.

Cadáveres de vítimas de crime; 4. As causas da morte: importância de sua determinação; 5. As diversas modalidades de necrópsia; 6. Cadáveres que poderão ser destinados ao estudo; 7. O modo de proceder; 8. Liberação do corpo; 9. Outras observações; 10. Providências finais; 11. Respostas aos quesitos.

Hic mors gaudet sucurrere vitae

1. A consulta formulada.

Por intermédio de dileto amigo, o Exmo. Sr. Prof. Dr. Victor Pereira, M. D. Professor Pleno de Medicina-Legal e Ética Médica, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, honra-me a veneranda Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, através de seu ilustre Diretor Clínico, o Exmo. Sr. Prof. Dr. José Mandia Netto e do não menos ilustre Diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o Exmo. Sr. Prof. Dr. João Fava, com consulta sobre o aproveitamento de cadáveres para os estudos de Anatomia.

Veio a consulta redigida nos termos seguintes:

"Como é sabido, a obtenção de cadáveres, indispensável para o ensino de Anatomia Humana e para a própria formação profissional na área da saúde, vinha-se fazendo pelo costume imemorial da utilização sem maiores formalidades, dos corpos indigentes e de mortos não reclamados pelas respectivas famílias.

Acontece, todavia, que a crescente complexidade do mundo moderno criou dificuldades novas nesse aspecto. Assim, o simples e quase rotineiro encaminhamento de indigentes às Faculdades de Medicina passou a sofrer contestações de diferentes setores e estabelecimentos hospitalares a negarem a entrega de corpos, com receio de infringir a lei penal.

Por outro lado a Previdência Social causou problemas imprevisíveis, com o pagamento do auxílio-funeral unicamente aos beneficiários que comprovassem as despesas de enterro, com isso impedindo a doação de corpos, sob pena do não recebimento de tal benefício.

Com a promulgação da lei nº 8501, de 20 de novembro de 19092, que dispôs sobre a utilização de cadáver, para fins de estudo de pesquisa científica, aquela entrega pode ser feita claramente sob a égide do diploma legal.

A lei estadual nº 10095 de 03 de maio de 1968 que dispôs sobre o Serviço de Verificação de Óbitos no Município de São Paulo determinou no art. 12, III, parágrafo 3º que "As necrópsias dos falecidos nos hospitais da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, localizados no Município da capital só poderão ser realizados pelo Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas dos Hospitais daquela Santa Casa".

A lei estadual nº 5.452 de 22 de dezembro de 1986 que reorganizou os Serviços de Verificação de Óbitos no Estado de São Paulo, reiterou esse entendimento, consignando o capítulo V - das Disposições Transitórias, art. 1º: "As instituições referidas no artigo 12, da Lei nº 10095, de 3 de maio de 1968, ficam credenciadas a continuar a realizar necrópsias, sujeitando-se ao disposto nesta lei".

Assim, o Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, pode encaminhar ao Departamento de Ciências Morfológicas da mesma escola, cadáveres não reclamados para fins de estudo de Anatomia Humana

Todavia, algumas dúvidas de interpretação de dispositivos da Lei nº 8501, têm tolhido o início do referido encaminhamento:

1ª. O que se entende no artigo 2º por "autoridades públicas"? Se for o Estado a quem e como comunicar o óbito?

2ª. Na hipótese do inciso II, do art. 3º., "a autoridade competente" pela publicação da notícia do falecimento será a Santa Casa e/ou a sua Faculdade de Ciências Médicas ou a autoridade pública prevista no art. 2º?

3ª. A morte dos corpos encaminhados para fins de estudo, obrigatoriamente terá sido de causa natural. Será necessária a emissão da Declaração de Óbito com a finalidade de certificar a existência da morte e registrar a sua causa fornecendo elementos para a estatística demográfico-sanitária? Caso afirmativo a declaração deverá ser encaminhada ao Cartório de Registro Civil?

O alto padrão de ensino na nossa Faculdade está sendo comprometido pela falta de cadáveres para dissecação. O último deu entrada no laboratório de Anatomia em 10/06/98. São necessários no mínimo quinze (15) anualmente para o estudo da Anatomia Humana. No ano corrente o ensino é feito apenas em peças anatômicas dissecadas mais de uma vez, pelos assistentes do Dep. de Ciências Morfológicas, com as estruturas cuidadosamente identificadas por etiquetas numeradas, com legendas em separado, numa ficha especial (fotos anexas). Aos alunos é permitido tão só olhar as peças. Sem tocá-las, para não danificá-las. O que esperar de futuros médicos, mormente os das especialidades cirúrgicas, sem nenhuma experiência em dissecação?

Não queremos que pairem dúvidas no cumprimento da lei nº 8501 quanto a lisura que tem sempre norteado a atuação desta Santa Casa.

Destarte solicitamos ... parecer sobre as questões objeto de dúvida antes expostas e outros esclarecimentos sobre o assunto que ... julgar pertinentes, para balizar a utilização de cadáveres não reclamados para fins de estudo nesta Instituição".

2. Apresentação do tema.

A matéria é relevante e sua análise, sem dúvida, da mais alta importância, na medida em que, dificilmente poder-se-á formar Médicos, como bem salientado na consulta, notadamente das especialidades cirúrgicas, sem o adequado - e profundo - conhecimento da Anatomia.

Para tanto, se faz necessária a prática da dissecação de cadáveres e o exame, ictu oculi, das diferentes peças anatômicas, suas características, eventuais malformações, etc., permitindo a indispensável familiarização dos futuros Médicos, com todos os aspectos da Anatomia Humana.

Palavra de origem grega , esse, precisamente, o sentido etimológico do vocábulo "Anatomia", oriunda de anatomé, com tal preciso sentido, de "incisão, dissecação".

Bem à propósito, colhe-se também nos léxicos que o substantivo "Anatomia" compreende exatamente, em um de seus significados, a "Análise meticulosa, rigorosa; estudo minudente".

O Direito tampouco é imune a esse conceito e registra com sua habitual precisão, DE PLÁCIDO E SILVA , no verbete "ANATOMIA DE UM DIREITO;".

Assim se considera um direito, encarado ou estudado relativamente à sua composição ou aos seus elementos essenciais, isto é, daqueles de que se constitui".

Dessa maneira, o estudo da Anatomia Humana se faz imprescindível para o conhecimento e compreensão do corpo humano como um todo, na importância e interação de todas e cada um de seus órgãos ou partes, como meio essencial para a prorrogação da vida e cura dos diversos males, escopo primeiro e maior da Medicina, enquanto técnica, arte e ciência, no seu primeiro e mais expressivo compromisso.

Esse, em outros termos, o conteúdo e a justificativa para a inserção da preciosa epígrafe com que se inicia este estudo, exortação inscrita nos Departamentos de Anatomia Patológica das melhores Faculdades de Medicina, entre os quais, como podemos testemunhar, o pertencente à respeitada Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Relembra ele, a um só tempo, o respeito devido àquele que se finou e cujos despojos se prestam para os estudos de tão nobre profissão, bem como o fato de sermos, todos, simples transeuntes nesta vida, na qual estamos em mera passagem, o quanto possível, em proveitoso e frutífero caminhar em busca de nossa Pátria espiritual.

Suscetível ao problema, houve por bem o Governo Federal de editar a Lei 8.501, de 30 de novembro de 1992, que disciplina a matéria, na mesma se contendo, como se colhe em sua ementa, dispor "... sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudos ou pesquisas científicas e dá outras providências".

3. Cadáveres de vítimas de crime.


Desde logo, inovando em termos de disciplina da problemática médico-legal, é importante salientar que a lei permite o encaminhamento para estudos de anatomia, também dos cadáveres das vítimas de morte violenta, somente fazendo ressalva expressa quanto às hipóteses em que houver suspeita da prática de crime.

Sem dúvida, cabe severa crítica a esse permissivo, pois não está na alçada do médico-legista determinar se a morte ocorreu, ou não, por força de crime, senão o anotar, dentro de seu compromisso profissional e ético, através do visum et repertum as circunstâncias, elementos, achados ou comemorativos que possam constituir indicadores, v. g., da prática de lesões por terceiros, ministração de narcóticos ou venenos, análise da alcoolemia, etc.

Esse é, entretanto, o teor do § 3º do art. 3º da lei sob comentário, ao dispor, textualmente, que "É defeso encaminhar o cadáver para fins de estudo, quando houver indícios de que a morte tenha resultado de ação criminosa".

Caberá ao médico-legista, face a tal dispositivo, redobrada prudência e cuidado ao registrar os seus achados, sendo certo que em caso de dúvida -- não hesitamos em adiantar essa primeira conclusão -- o cadáver não poderá ser utilizado para os estudos de anatomia.

O dispositivo se justifica.

Realmente, é sabido que os cadáveres destinados aos estudos de anatomia passam por um processo de preparação, inclusive com a remoção de vísceras e/ou, ao menos, de seu conteúdo, seguindo-se processo de formolização.

Além disso, as diferentes peças anatômicas, haverão de sofrer a necessária separação e dissecação, com o que resultará inequivocamente comprometida toda e qualquer pesquisa de caráter médico-legal, sobre a denominada causa jurídica da morte, certo que a experiência demonstra não serem poucos os casos em que se procede, inclusive, à exumação de cadáveres, para a realização de novos e mais acurados exames periciais.
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* Advogado e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo






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