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A cor da fumaça

Renata Domingues Balbino Munhoz Soares

Decisões já proferidas em matéria de indenização pelos danos decorrentes do tabagismo oscilam de forma desequilibrada.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Atualizado em 23 de fevereiro de 2015 16:22

"As questões relacionadas à responsabilidade, conforme determinado por cada Parte dentro de sua jurisdição, são um aspecto importante para um amplo controle do tabaco." (Artigo 4, item 5, da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco).

Historicamente, na definição de um novo Papa, o resultado das votações é simbolizado por uma fumaça preta, quando ainda não há o nome de um novo Pontífice, ou uma fumaça branca, se o julgamento já se encerrou, tendo um resultado positivo a ser proclamado.

A "fumaça" a ser liberada no próximo dia 25 pelo E. Tribunal de Justiça de São Paulo, pela 7ª câmara de Direito Privado, no julgamento da apelação em ação coletiva indenizatória da ADESF - Associação de Defesa da Saúde dos Fumantes, proposta há 20 anos contra a Souza Cruz e a Philip Morris, poderá vir ao encontro das ações de controle do tabaco no Brasil e no Mundo.

Desde 2005, ao ratificar a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (primeiro Tratado Internacional de saúde pública da história da Organização Mundial da Saúde), o Brasil comprometeu-se a seguir as diretrizes ali estabelecidas com "reconfiguração do ordenamento jurídico, inclusive com alterações na interpretação".1

As evidências científicas que comprovam de forma inequívoca o efeito viciante da nicotina e a relação cigarro-doença-morte, as ações de marketing voltadas propositadamente ao público jovem2, a supressão intencional de informações pela indústria tabagista, e a propagação global da epidemia do tabagismo, não podem ser desprezadas pela jurisprudência brasileira.

Em sentença histórica de 1.700 páginas, nos Estados Unidos, a juíza Gladys Kessler, da vara Federal do Distrito de Columbia, em 2006, reconheceu que "a indústria está por trás da epidemia tabagista e atua em conjunto e coordenadamente para enganar a opinião pública, governo, comunidade de saúde e consumidores."3

No Brasil, as decisões já proferidas em matéria de indenização pelos danos decorrentes do tabagismo oscilam, de forma desequilibrada, na balança da justiça. Será que não chegou o momento de tornar essa balança um espelho da realidade global?

O panorama que possuímos mostra-nos decisões majoritárias a proclamar o livre arbítrio do consumidor (inexistente, a nosso ver, diante da incapacidade por idade, por doença ou por deficiência informacional do fumante), a inexistência de nexo de causalidade (muitas doenças são próprias do tabagismo, como a tromboangeíte obliterante, além da comprovação pela ciência de que uma grande relação de doenças são decorrentes do tabagismo), bem como a licitude da produção (esquecemos que existe responsabilidade civil por atividade lícita?).

É importante trazer à baila os fundamentos de algumas decisões brasileiras, desconhecidas muitas vezes da comunidade jurídica, por estarem escondidas sob o manto de votos minoritários.

Nesse sentido, num julgado de 2012 do TJ/SP, em sede de embargos infringentes4, o voto vencido foi favorável à tese de responsabilidade da indústria, considerando que as estatísticas revelam câncer em fumantes; que os leigos não têm a percepção dos riscos reais; que a propaganda é fator desencadeante do consumo; e que há obviedade do malefício da atividade danosa da indústria.

Em 2011, encontramos também um voto vencido, em sede de apelação5, que reconhece a importância da dilação probatória; que se trata de questão de saúde pública; que o cigarro é um produto cientificamente admitido como nocivo e vicioso; que o livre arbítrio não resiste ao assédio massacrante da propaganda; que a nicotina é viciante; que o problema está nos ingredientes agregados ao fumo na fase de industrialização; que existe nexo causal entre a moléstia/morte e a manipulação do produto, etc.

Em 2010, há decisão que admite a responsabilidade objetiva decorrente da teoria do risco assumido com a fabricação e comercialização do produto6. Em 2008, predominam decisões favoráveis7, no sentido de que: há o dever de indenizar, há responsabilidade objetiva e omissão dos resultados quanto ao efeito viciante da nicotina. Também no ano de 2006 prevalecem decisões favoráveis.8

Que seja branca essa tão esperada fumaça, em 2015!

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1 VEDOVATO, Luís Renato; VEDOVATO, Tatiana Giovanelli; Sperandio, Ana Maria Girotti. O PAPEL DO DIREITO INTERNACIONAL NA LEGISLAÇÃO INTERNA SOBRE O CONTROLE DO TABACO. RDisan, São Paulo, Nov.2012/Fev.2013, v. 13, n. 3, p. 156.

2 No Brasil, pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), em 2010, apontou que a idade média do primeiro uso é de 13,3 anos. Já a Pesquisa Nacional sobre Saúde do Escolar (PENSE), do Ministério da Saúde e IBGE, realizada em 2012, mostrou que a proporção de estudantes do ensino fundamental (entre 13 e 15 anos) que experimentaram cigarros foi de 22,3%. De acordo com a OMS, 90% dos fumantes começam a fumar antes dos 18 anos.

3 O veredicto final: trechos do processo Estados Unidos x Philip Morris. Edição: Aliança de Controle do Tabagismo - ACTbr e Organização Pan-Americana de Saúde - OPAS. 1ª ed., 2008, p. 5-7.

4 Embargos Infringentes nº 9134290-86.2006.8.26.0000/50000.

5 Apelação nº 9134290-86.2006.8.26.0000.

6 Apelação nº 994.08.020577-7.

7 Apelação nº 379.261-4/5-00 e outros.

8 Apelação nº 260.828-4/2-01 e outros.

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*Renata Domingues Balbino Munhoz Soares é advogada e membro efetivo da Comissão de Assistência à Saúde da OAB/SP. Professora de Direito Civil e Empresarial da Faculdade de Direito Mackenzie, doutora e mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie e coordenadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar "Direito e Tabaco".









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