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Cidadão, pode entrar que a casa é sua

O município é o pedaço do Estado mais próximo do cidadão, onde devem ser efetivados os mecanismos de construção democrática. É imperativo o acesso ao que se realiza na sua cidade.

sábado, 21 de março de 2015

Atualizado em 20 de março de 2015 11:26

Hemon: Nenhuma cidade pertence a um só individuo.
Creonte: Uma cidade não pertence, então, a seu chefe?
Hemon: Ah! Você parece ter sido feito para comandar sozinho uma cidade deserta!

Esse diálogo de Antígona (Sófocles) revela bem a contraposição entre uma comunidade republicana e uma comunidade tirânica. A essência do regime republicano está exatamente em discernir os interesses privado e público, o interesse próprio do bem comum. Assim, os indivíduos que vivem em função dos seus interesses pessoais podem livremente assim o fazer, na esfera da sua individualidade. Mas se desejarem conviver politicamente, é necessário o respeito ao interesse de todos aqueles que compõem a comunidade.

Essa livre disposição é inclusive o que caracteriza a propriedade privada, poder que pode ser oposto contra todos, previsto em diversos ordenamentos jurídicos. Ao contrário do público, cuja gestão requer justamente a não influência dos interesses pessoais. Daí é que emerge a ideia de república (res publica, bem público).

A república é um regime que se mantém melhor nas democracias. Se o que se pretende com a república é o bem comum, nada mais lógico que todo o povo, e não alguns, exerça o poder político. A democracia, por sua vez, está conectada à descentralização, com as autonomias locais, distanciando-se portanto das centralizações autoritárias.

Assim, a autonomia conferida aos municípios na Constituição Federal de 1988 representou o desmonte de uma estrutura burocrática centralizadora, em que o povo não tinha qualquer participação ou controle. O poder local teve grande relevância no processo de redemocratização do país. Essa descentralização, juntamente com a participação da comunidade no planejamento e controle das políticas publicas, é o que garante a efetividade da Constituição em proveito da cidadania. Todo cidadão tem o direito fundamental de saber o que foi feito em nome do povo - em seu nome, portanto.

A cidadania é o direito a ter direitos, positivados na Carta Constitucional, resultantes de uma construção coletiva e que têm como essência a manutenção do acesso ao espaço público.

A crise das instituições democráticas foi o que proporcionou, lembrando Hannah Arendt, a ausência de interesse dos cidadãos na participação política. A sociedade de massa é constituída por seres incapazes de pensar em termos coletivos e aprisionados em suas vidas privadas apenas, o que criou condições para a ascensão dos movimentos totalitários no poder.

Contudo, vale lembrar que vivemos numa república democrática, e a estrutura básica desse regime é integrada por um sistema público de regras, que deve ser conhecido por todos como se fosse fruto de um acordo, como observou Rawls. Nos casos em que apenas uma parcela de determinada instituição tem conhecimento das regras, é quebrantada a base comum para determinação das expectativas mútuas. Decorre disso a notável importância da transparência para a manutenção da participação popular nos regimes democráticos.

O segredo é mecanismo comum dos regimes autoritários. Na democracia, a liberdade de informação deve ser acessível aos cidadãos. Quanto maior o déficit de informações para os cidadãos, mais distantes eles se posicionam das instituições democráticas. A democracia pressupõe livre conhecimento e participação do cidadão na vida pública, sendo a transparência o veículo de sua efetividade.

Os municípios são as unidades básicas do sistema institucional da sociedade brasileira e lhes foram transferidas uma série de competências, visando o desenvolvimento das comunidades locais. A Carta Constitucional de 1988 atribuiu aos entes municipais diversas prestações, ações de ordem social, econômica, cultural e ambiental, cuja segura efetivação demanda a presença de um corpo jurídico estável na sua estrutura organizacional, integrado por procuradores concursados. Portanto, isentos, qualificados e independentes, aptos a contribuir para o aprimoramento da capacidade técnica, financeira e gerencial na execução das inúmeras competências municipais e capacitados tecnicamente para orientar juridicamente os gestores com segurança, reduzindo o risco de impugnação dos atos administrativos.

A seleção desses profissionais só pode ser realizada por meio de concurso público, como determina a Constituição, sob pena de se violar a impessoalidade que deve orientar a Administração Pública. Escolhas pessoais dos gestores ficam detidas na sua esfera particular, não podem, sob qualquer argumento, transitar para a esfera pública. Do contrário, o município será levado ao naufrágio, ao escárnio e ao escândalo: serão feridos de morte os ideais republicanos que tão bem convivem com a democracia.

O mesmo pode ser dito acerca da transparência. Isto porque a transparência dos atos dos agentes públicos, sejam servidores públicos ou agentes políticos, é a legítima garantia desses próprios atos, aumentando a segurança de todos, sejam investidores ou administrados, na gestão pública. O que é público, como já ressaltado, não deve sofrer os influxos dos interesses pessoais, a não ser que se queira viver na "República dos Amigos do Rei", onde as afinidades substituam a ampla seleção pública, e o sigilo deixe de ser exceção.

O Município é o pedaço do Estado mais próximo do cidadão, onde devem ser efetivados os mecanismos de construção democrática. É imperativo que lhe seja dado o acesso ao que se realiza na sua cidade, em seu nome. Afinal, cidadão, a casa é sua!

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*Geórgia T. Jezler Campello é presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais e procuradora municipal em Salvador/BA.

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