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Autonomia da vontade do paciente e a morte

O paciente é o detentor do poder de decidir a respeito do final de sua vida, desde que seja compatível com a previsibilidade legal.

domingo, 14 de junho de 2015

Atualizado em 15 de junho de 2015 06:42

O homem age de acordo com sua natureza racional, toma suas decisões com liberdade, busca seus objetivos e traça seu projeto de vida que, num resumo bem objetivo, é realizar toda a programação para se chegar ao bem-estar proclamado por Aristóteles, na procura da felicidade. Após atingir sua maioridade, passa a ser o senhor absoluto de seus atos, desde que tenha condições mentais de deliberação. Em todos os atos da vida civil que participa, dá sua aquiescência, como sendo a manifestação inequívoca de vontade de celebrar determinado ato.

As revoluções democráticas, a consagração de novos direitos, os avanços da biotecnologia, da biotecnociência e com o nascimento da bioética, cujo campo é um dos pilares em que se finca o presente estudo, a liberdade de agir do cidadão assumiu a forma autônoma para que pudesse deliberar de acordo com a opção desejada, dentre todas as que lhe forem apontadas. Assim, a autonomia da vontade do paciente compreende o agente capaz, com plenas condições de discernimento a respeito de sua saúde, integridade físico-psíquica e suas relações sociais. O tema é tão extenso para ser abordado que o espaço agora ocupado torna-se diminuto para tanto.

O que se busca, na conceituação do princípio da autonomia da vontade do paciente, é o exercício de um ato compartilhado entre as partes. O médico ajusta-se como advogado do paciente, no verdadeiro sentido etimológico da palavra, isto é, aquele que é chamado para comparecer e ficar ao seu lado para assisti-lo (ad+vocare). O paciente é a pessoa detentora de uma gama enorme de direitos e que necessita de cuidados para aliviar sua dor, sofrimento e moléstia com o respeito merecido em razão da dignidade humana.

Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer com a mesma dignidade do direito de nascer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. A Constituição, de forma imperativa, prega a indisponibilidade da vida humana. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.

A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar do homem resistir a travar discussão a respeito. O modo humano de morrer, percorrer o caminho da longa jornada e saber que a vida, apesar de frequentar todos os sentimentos humanos, é uma preparação para a morte. Mas o que se leva do homem, não é a morte e sim, a vida. O homem, por paradoxal que pareça, tem repugnância pela morte. O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade.

Nesta fase, será que o homem, que durante toda sua vida recebeu diversas modalidades de tutela, pode divorciar-se do Estado e decidir de acordo com sua autonomia, fazendo opção pela morte, quando a regra é a vida? Se a autonomia da vontade integra o princípio da dignidade humana, não seria correto o paciente, para aliviar sua dor e sofrimento e evitar o descontrole sobre sua vida e funções biológicas, optasse por uma morte antecipada e suave?

Não se coloca em discussão a indisponibilidade da vida e sim o direito do cidadão de definir a respeito do seu fim, buscando a dignidade da morte diante do princípio da autonomia. Com o perfil mais humano, sem que haja a antecipação da morte, sem que se valha de alguém para a prática do suicídio, e sem que o enfermo fique numa agonia interminável, faz-se a opção pela morte que se apresenta no momento correto.

Recentemente, a americana Christy O'Donnel, moradora do Estado de Califórnia, diagnosticada com câncer no pulmão em estágio 4, com fundamento no princípio da autonomia da vontade do paciente, pleiteou a intervenção dos tribunais para autorizar que o médico possa, legalmente, prescrever medicação que a conduza a uma morte com dignidade, sem passar pelo calvário da doença. Nos Estados Unidos somente cinco Estados editaram leis que permitem o suicídio assistido: Oregon, Washington, Montana, Vermont e Novo México.1

Não se aplica no Brasil tal permissibilidade. O Código de Ética Médica, obliquamente, introduziu a morte ortotanásica, quando disciplinou que "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal" (Artigo 41, parágrafo único).

Percebe-se, desta forma, que o paciente é o detentor do poder de decidir a respeito do final de sua vida, desde que seja compatível com a previsibilidade legal. É o reconhecimento de que somente a ele cabe definir as metas que deverão ser implantadas. Por este novo conceito o homem recupera sua autonomia de vontade como paciente e abandona toda e qualquer restrição estatal ou determinação médica. Assim, a pessoa sendo maior e habilitada para a vida civil, poderá deixar seu testamento vital, no qual expresse, de forma inequívoca, quais são as diretrizes antecipadas de sua vontade com relação aos cuidados de saúde que deseja ou não receber para humanizar o final da vida, ou até mesmo nomear um procurador para representá-lo, quando se encontrar incapaz.

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1 https://extra.globo.com/noticias/mundo/mae-solteira-com-cancer-terminal-busca-na-justica-ajuda-para-suicidio-assistido-16262148.html#ixzz3bFK8ATGc
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é
promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.

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