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Proibição da Uber: a inconstitucionalidade do PL 349/2014

Proibição da Uber: a inconstitucionalidade do PL 349/2014 do Município de São Paulo

Renato Leite Monteiro

A Lei Nacional de Mobilidade Urbana, ao deixar de fora o conceito de serviços de transporte privado particular, estabelece uma distinção entre estes e os serviços de transporte público individual.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Atualizado em 6 de julho de 2015 14:48

No dia 30 de junho de 2015 a Câmara dos Vereadores do Município de São Paulo votou, em primeiro turno, o PL 349/2014, que visa, em tese, de acordo com sua ementa, proibir na cidade de São Paulo o "uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas". O art. 1º quase que reproduz a ementa, apenas acrescentando que os veículos devem sair de locais pré-estabelecidos. Todavia, referido projeto de lei encontra-se, salvo maior juízo, eivado de inconstitucionalidade por usurpar competência exclusiva da União e ainda legislar em desacordo com lei federal. Vejamos:

A regulamentação da atividade exercida por motoristas de táxi é concorrente, por ser este de interesse local (CF/88, Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local). Os Municípios têm competência para aprovar leis locais de acordo com suas particularidades. E a União tem competência para regular os requisitos gerais que devem funcionar como balizas para as leis municipais, de acordo com o princípio da hierarquia das normas (CF/88. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: IX - diretrizes da política nacional de transportes). A lei federal 12.468/2011 regulamenta a profissão de taxista. Ela determina em seu Art. 2º que: "é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros". Em seguida lista uma série de requisitos e condições que o motorista de táxi deve preencher para exercer referida profissão.

Devido a grave crise de mobilidade urbana enfrentada pela maioria das cidades brasileiras, em 2012 foi promulgada pela União a lei federal 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Seu Art. 4º define transporte urbano como "conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana". A lei continua no mesmo artigo definindo as diferentes modalidades de transporte urbano. Entre elas importante destacar as seguintes:

VI - transporte público coletivo: serviço público de transporte de passageiros acessível a toda a população mediante pagamento individualizado, com itinerários e preços fixados pelo poder público.

VII - transporte privado coletivo: serviço de transporte de passageiros não aberto ao público para a realização de viagens com características operacionais exclusivas para cada linha e demanda.

VIII - transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizada.

X - transporte motorizado privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares.

Em resumo, a lei define:

Serviço de transporte público coletivo: serviço público, e por isso depende de autorização do ente público respectivo.

Serviço de transporte privado coletivo: serviço não aberto ao público, mas com características únicas, não necessariamente remunerado.

Serviço de transporte público individual: serviço remunerado aberto ao público.

Transporte motorizado privado: não é um serviço, mas sim um meio de transporte individual, como os carros utilizados pelos seus proprietários.

Todavia, a lei não define os serviços de transporte privado individual. Quando esta define "transporte motorizado individual" ela não se refere a um serviço, apenas a um tipo de transporte. Ou seja, os serviços de transporte oferecidos de forma privativa não são, atualmente, regulados, e por sua vez, justamente por serem privados, não podem ser considerados ilícitos uma vez ausente regulação específica.

E é justamente nesta modalidade que se encontram os motoristas particulares privados que utilizam a plataforma da Uber para oferecer seus serviços.

A Lei Nacional de Mobilidade Urbana, ao deixar de fora o conceito de serviços de transporte privado particular, estabelece uma distinção entre estes (que não encontram definição em qualquer outra norma no ordenamento jurídico brasileiro) e os serviços de transporte público individual (já definidos).

Em oportunidade anterior descrevi o funcionamento da plataforma oferecida pela Uber e também analisei alguns de seus aspectos legais.

A Uber é uma empresa de tecnologia que disponibiliza uma plataforma acessível através da Internet que visa colocar em contato motoristas profissionais particulares e potenciais clientes interessados em se deslocarem de forma mais confortável e segura. Trata-se de uma alternativa aos meios tradicionais e antiquados de locomoção, presos às dificuldades inerentes aos grandes centros urbanos.

O serviço de transporte viabilizado pela tecnologia da Uber não é, por sua vez, um serviço público ou de utilidade pública, porque a lei não o caracteriza como tal. Serviços somente detém referida natureza jurídica se esta for atribuída por lei. Também não se trata de um serviço privado que precisa de uma autorização pública para funcionar, pois assim não restou definido em lei. Trata-se de um serviço publicamente acessível, que detém uma natureza jurídica distinta, não regulada.

Desta forma, atualmente, existe um hiato legislativo com relação aos serviços ofertados através do modelo Uber e da sua plataforma. De fato, qualquer nova modalidade de serviço público somente pode funcionar com regulação própria e anterior. Todavia, esta é justamente a principal razão porque o modelo Uber é constitucionalmente protegido: porque este pode ser considerado pela lei um serviço de transporte privado individual, que não pode ser considerado um serviço público, e, portanto, desnecessária a regulação para ser ofertado.

O PL 349/2014 visa proibir o transporte remunerado privado individual de passageiros. Uma simples inferência lógica permite afirmar que esta prática, hoje, não se encontra em desacordo com as leis vigentes, mas em um hiato legislativo. Se assim o fosse, não seria necessária uma nova lei tornando a prática ilícita. Bastaria apenas garantir a aplicação, por meio das autoridades competentes, das leis que estariam, em tese, sendo violadas. O PL 349/2014 atesta, por fim, é que a atividade desempenhada pelos motoristas que utilizam a plataforma Uber é, hoje, lícita, justamente por não ser regulada.

Ademais, salvo maior juízo, não poderia o Município legislar sobre serviços de transporte privado individual por ausência de competência outorgado pelo texto da Constituição Federal. Segundo o art. 30 da CF/88, podem os municípios legislar sobre assuntos de interesse local. Desta previsão decorre a competência para promulgar leis sobre os serviços de táxi. A CF/88 confere exclusivamente ao Município a competência para regular serviços públicos de interesse local, incluindo o transporte coletivo. Mas não para regular transportes privados. Essa faculdade foi conferida a União.

O art. 22 da Constituição estabelece que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes. E assim o fez através da lei federal 12.587/2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Esta lei regulamento o inciso IX do referido artigo da CF/88 e estabeleceu balizas, tanto para os Estados quanto para os Municípios, sobre a disciplina dos transportes. Quanto ao Município, esta determinou que:

Art. 12. Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas.

E complementou, no art. 12-A, que o serviço de táxi poderá "ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local". Ou seja, não foi conferido a municipalidade a competência para legislar sobre transporte privado individual de passageiros.

O Supremo Tribunal Federal já teve, inclusive, a oportunidade de se pronunciar sobre tema similar, afirmando que cabe ao Município legislar sobre transporte público, mas não sobre modalidades de transporte privado individual:

"A prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito." (ADI 2.349, rel. Min. Eros Grau, julgamento em 31-8-2005, Plenário, DJ de 14-10-2005.) No mesmo sentido: RE 549.549-AgR, rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 25-11-2008, Segunda Turma, DJE de 19-12-2008.

Desta feita, o PL 349/2014 que visa regular, ao proibir, a atividade de transporte privado individual de passageiros mediante remuneração, o faz em desacordo a competência lhe outorgada pela Constituição Federal e as balizas sobre transporte estabelecidas em lei federal que implementou o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Portanto, não só o PL corrobora o fato desta modalidade de transporte não ser atualmente regulada, mas ao tentar normatizá-la, o faz por meio de usurpação de competência constitucional. Portanto, como já dito:

Na esfera privada, a ausência de regulação anterior não impede o imediato exercício de atividades econômicas, nem mesmo pelas partes interessadas que desejam implementar metodologias de uso racional dos ambientes urbanos através de tecnologias de transporte mais eficientes, como as proporcionadas pela Uber.

A Uber não oferece serviços de táxi, muito menos de transporte clandestino e não autorizado de passageiros. O Uber oferece um serviço ainda não regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro. E o fato deste não estar regulado não significa que este é ilícito.

Num Estado Democrático de Direito, deve imperar o contrário: caso não sejam expressamente proibidos, os serviços oferecidos por empresas e empreendimentos privados são legais.

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*Renato Leite Monteiro é professor e advogado de Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.

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