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Desistência voluntária ou arrependimento eficaz?, por Eudes Quintino

Desistência voluntária ou arrependimento eficaz?

O homem, pela sua natureza, carrega bons e maus impulsos, que constantemente se digladiam, mas por maior que seja a dominação do mal, há sempre uma centelha que renova as esperanças na supremacia do bem.

domingo, 12 de julho de 2015

Atualizado em 10 de julho de 2015 11:43

Como professor de Direito Processual Penal sempre considerei interessante apresentar ao aluno um caso prático para que pudesse ser discutido e apontadas as divergentes soluções, vez que o Direito não é uma ciência exata. Embora a disciplina apresentasse um conteúdo teórico indispensável, justamente para que o aluno pudesse receber as informações doutrinárias referentes a cada instituto, um exemplo bem colocado sempre oferece um campo fértil para as divagações jurídicas. O aluno do curso jurídico deve, obrigatoriamente, exercitar seu raciocínio em torno de fatos que reclamam a aplicação do Direito. Confesso que recebia bem quando, após a exposição do caso a ser enfrentado, o aluno dizia que não sabia solucioná-lo. Já era uma boa resposta, dizia eu, porque Sócrates, o ateniense que muito colaborou com a filosofia e que nada deixou escrito, quando indagado, dizia: "o que eu sei é que nada sei". E o conforto era generalizado.

Lembro-me de um relato que causou intensa polêmica e repasso agora para os estudiosos do Direito para que façam suas divagações.

Um cidadão, primário, de invejáveis antecedentes, teve um problema com um parente seu, envolvendo uma dívida de que era credor. Em determinado dia, armado com um revólver de bom calibre, abordou-o, iniciou com ele uma discussão e, não se contendo, desfechou contra ele quatro disparos, sendo que dois o atingiram. A arma continha ainda mais quatro projéteis. O agressor, no entanto, querendo invalidar toda sua conduta, recolheu a vítima, transportou-a até o hospital e lá permaneceu vigilante até que o socorro fosse prestado com êxito, responsabilizando-se pelos pagamentos hospitalares e honorários médicos.

O MP ofertou denúncia pelo crime de homicídio na forma tentada, vez que presente o animus necandi, arrematando que a vítima acabou por experimentar lesão de natureza leve.

A questão a ser debatida é se ocorreu a desistência voluntária ou o arrependimento eficaz.

Conforme já dito anteriormente, a arma do acusado carregava oito projéteis. Quatro foram disparados, os demais em condições de pronto uso. A vítima que já se encontrava ferida, cambaleante não se apresentava como um alvo difícil de ser atingido. Se o acusado quisesse poderia continuar sua empreitada criminosa e feri-la mortalmente. Ocorre que, de forma voluntária, sem qualquer outro fator externo, sem qualquer outra circunstância impeditiva da realização de seu ato, cessou imediatamente seu comportamento até então criminoso. É uma inegável hipótese de desistência voluntária, consagrada no artigo 15 do CP.

"Dizer que tal fato é típico de tentativa de homicídio, adverte TELES, é ignorar os fins da norma penal incriminadora: proteger o bem jurídico das lesões ou ameaças de lesões graves. A punibilidade da tentativa decorre do perigo de lesão grave em que ela consistiu. Ora, se houve desistência voluntária ou arrependimento eficaz, desapareceu o perigo de lesão do bem jurídico por ato voluntário do próprio agente que o causara. Ele mesmo, que causara o perigo, deu efetiva proteção ao bem, desistindo ou eficazmente se arrependendo. Assim se comportando, realizou a vontade do Direito, que é proteger o bem jurídico. Quem alcança o fim do Direito não pode estar realizando algo proibido ou ilícito"1.

Tal fato faz remeter o pensamento para Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievsky, relembrando o calvário que conduz ao arrependimento, a consciência que fica corroendo a alma do infrator, o castigo, não o da lei, mas o do autoflagelo, do cilício que açoita o senso moral, denunciando a ilicitude. A conclusão é que o homem, pela sua natureza, carrega bons e maus impulsos, que constantemente se digladiam, mas por maior que seja a dominação do mal, há sempre uma centelha que renova as esperanças na supremacia do bem. Se o próprio agente, após perambular pelas fases do iter criminis, decide sustar a execução do ilícito e desiste de ingressar na pretendida área do exaurimento, é interessante para o Estado recompensá-lo com a impunidade. Fran Liszt falava da existência de uma "ponte de ouro", quer dizer, a peregrinação criminosa desenvolveu a contento para o agente, sendo bem sucedida, porém, num repente, pretende desfazer o ato e é nesse momento que surge a salvadora ponte, permitindo que retroceda e desfaça sua conduta ilícita, culminando com o regressus ab initio e a restitutio in integrum. Já a fórmula apresentada por Frank é bem objetiva e incisiva: ocorre a desistência voluntária quando o agente pode prosseguir, mas não quer. E se prosseguir aí sim entrará na esfera da tentativa.

O acusado ultrapassou a barreira da desistência voluntária e abraçou ao mesmo tempo a do arrependimento eficaz. Com duas condutas diferentes, antagônicas com a primeira, conseguiu reverter toda a situação. Passou a borracha sobre a conduta originária e passou a escrever uma nova história, agora protetiva e tuteladora da vida humana. Basta ver que ainda agindo com a mesma voluntariedade e espontaneidade, desenvolveu comportamento a contrariu sensu, desconstituindo sua conduta originária, com a intenção de impedir a produção do resultado. É o desfazimento, a invalidação da conduta anterior. É a ação que se inicia após ter o agente realizado o processo de execução do crime e desenvolve nova ação visando impedir a produção do resultado. Vem a ser um ato de solidariedade humana representativo da vontade de não permitir a produção de resultado mais grave. É toda uma causalidade em sentido contrário provocada exclusivamente pela deliberação do agente causador do perigo. O agente abre mão do animus que imprimiu para atingir a meta optata e rompe com todo desígnio criminoso.

A título de ilustração: "Quanto ao arrependimento, não é ele hipótese de atipicidade, mas sim causa pessoal de exclusão da punibilidade, não enumerada no art. 107 do CP. Trata-se de um benefício concedido por razões de política criminal; um prêmio pelo afastamento do desistente ou do arrependido de seu projeto criminoso. Se o poder estatal cominasse, nessa situação, sanção punitiva, correr-se-ia o risco mais sério de incentivar o agente a completar a ação delituosa, impelindo-o à fase consumativa. Mas, se o próprio agente se incumbe, por vontade própria de obstar, de forma ativa, a concretização do resultado criminoso, atende a um interesse político do Estado que seja recompensado com a impunidade, respondendo exclusivamente pelos atos já realizados, desde que corporifiquem crimes ou contravenções, menos graves, já consumados" (RT 793/669).
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1 Teles, Ney Moura. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2004, p. 214.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.

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