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Uma reflexão sobre a viabilidade do sistema de saúde suplementar

O cenário não é confortável para as empresas e muito menos para seus beneficiários.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Atualizado às 14:06

As grandes operadoras de saúde enfrentam uma crise sem precedentes. Soma-se ao mau desempenho financeiro, o número crescente de processos que elas sofrem na Justiça. O cenário não é confortável para as empresas e muito menos para seus beneficiários.

Enquanto seria mais lógico fazer uma reflexão sobre as gestões internas, o que não funciona bem e por que tantos clientes insatisfeitos buscam o poder Judiciário, essas empresas preferem praticar o abuso de poder, num ritmo violento que fere os princípios constitucionais e qualquer regra coerente de mercado. Como prestar um bom e justo serviço parece estar fora de cogitação, e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) insiste em fazer vista grossa à situação, algumas empresas decidiram apelar para recursos escusos e abusivos na hora do contrato, criando mecanismos em que impõem o risco de seus negócios aos contratantes e, ainda, descumprem a decisão judicial no caso de processos. Cláusulas em que transferem para os clientes o ônus das ações judiciais, incluindo o valor da condenação, das custas, despesas processuais e honorários advocatícios mostram-se cada vez mais comuns nos contratos empresariais.

Se as seguradoras têm bancos de dados com gigantesca quantidade de amostras que garantem, por exemplo, qual será o montante total gasto com despesas hospitalares por um grupo de segurados de milhares ou milhões de vidas, e a média desses gastos é a base de cálculo utilizada na hora de propor um novo contrato, por que esse negócio vai mal?

Curiosamente, os planos de saúde não permitem abatimento na mensalidade quando a sinistralidade (diferença entre o valor pago pelo consumidor e os gastos da operadora de saúde) não atinge determinado patamar, o que aumenta a possibilidade de maior arrecadação, sem nenhum custo adicional e sem riscos. A ausência de riscos descaracteriza a natureza do contrato de seguro-saúde, já que o risco é elemento inerente ao contrato aleatório (caracterizado pela incerteza do momento em que o serviço será prestado - e talvez nunca seja efetivamente prestado - e em qual extensão).

Nesse tipo de contrato o segurador se obriga com o cliente, mediante recebimento da contraprestação, a indenizá-lo de prejuízos resultantes de riscos futuros e incertos, mas previsíveis. Atribuir ao segurado ou beneficiário o encargo pela ocorrência de "sinistro" ou os custos do processo por má prestação de serviços é o mesmo que transferir ao cliente a responsabilidade de arcar com o ônus do risco, distorcendo a própria construção teórica do contrato de seguro saúde.

Mesmo com o amparo do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, os consumidores são constantemente desrespeitados pelas operadoras, que insistem em causar instabilidade ao contrato e colocar o consumidor em desvantagem exagerada e em situação de grave risco à saúde, adotando posturas unilaterais como a rescisão - inclusive em massa - (como ocorrerá com os 50 mil beneficiários da Prefeitura do Rio de Janeiro a partir de junho, que até agora são atendidos pela Amil) por não haver mais interesse na manutenção do contrato. A prevalência dos interesses das seguradoras, que sempre apresentam cálculos e custos desconhecidos viola, ainda, o princípio da transparência na execução dos contratos.

O Código Civil (artigo 187) determina que aquele que contraria a boa-fé comete abuso de direito. Agindo de tal forma, os planos de saúde usam de recurso enviesado para driblar a crescente judicialização, sem se dar conta de que suas formas de gestão estão equivocadas. Quanto mais tortuoso for o caminho para se chegar a um bom termo e a contratos equilibrados, mais problemas enfrentarão as operadoras com as finanças, os consumidores e a Justiça. O emaranhado de questões sinaliza que o mercado está na UTI e necessita de medidas urgentes para se livrar da sua doença: as altas contas. O avanço da medicina e da tecnologia para diagnósticos encareceu demais a prestação de serviços.

Sabemos que há boas notícias, como a chegada de drogas novas para hepatite C ou para o câncer, que vêm mudando significativamente a expectativa de vida dos pacientes, mas elas são caras e, em geral, só chegam ao paciente por meio de recursos judiciais. Os Tribunais já têm súmulas especiais para atender alguns casos.

Então, como resolver o impasse entre uma medicina de qualidade e a boa e satisfatória prestação de serviços? Cabe essa reflexão para toda sociedade e órgãos competentes. A responsabilidade, o bom senso e regras justas de mercado poderiam muito bem caminhar de mãos dadas.

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*Renata Vilhena Silva, sócia-fundadora do Vilhena Silva Sociedade de Advogados, escritório especializado em direito à saúde.

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