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Direito e mercado: quem nasceu primeiro?

O direito é a base para a estruturação do mercado, não pode ele contradizer, por sua vez, o que a ciência econômica construiu ao longo de séculos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Atualizado em 1 de setembro de 2015 13:47

A noção que era corrente até algum tempo afirmava que os mercados surgiam e se desenvolviam de forma espontânea e, a partir de determinado momento, era necessária sua regulação jurídica para o fim de se dar segurança e certeza às operações neles realizadas. Estas, até então, estariam fundadas tão somente no fato de que as operações, os contratos, eram de execução instantânea, após o que cada uma das partes seguia para o seu lado; ou, ainda, se os negócios fossem a prazo, estaria presente a confiança mútua, fechando-se os contratos "no fio do bigode".

Essa visão foi revista a partir de trabalhos mais recentes, dos quais se destaca o texto de Natalino Irti, "L'Ordine Giuridico del Mercato", invertendo-se o sentido: primeiro estabeleceram-se as bases jurídicas necessárias e de suporte para as negociações e, sobre elas desenvolveu-se o mercado.

Um ponto se coloca inicialmente: afinal de contas, o que é este tal mercado?

Simplificando muito os fatos, façamos uma viagem para trás no tempo e voltemos a uma época primitiva da história da humanidade, na qual, já sedentários, os homens começaram a plantar e a criar animais para se alimentarem. Dentro de sua pequena aldeia alguém que dispusesse de algum bem destinado ao seu próprio consumo, desejasse outro bem de que não dispunha e, por isso, trocava o que tinha por aquilo que desejava, estabelecendo-se, nesse processo, um ciclo de permutas na comunidade. A isto seguem-se as trocas entre membros de diferentes comunidades, processo que se amplia ao longo do tempo.

Levin Goldshmidt observou a necessidade da existência de dois fatores prévios como condição para o escambo de bens, a divisão do trabalho e o reconhecimento do direito de propriedade privada .

Em dado momento, para facilitar as trocas, adota-se um bem dotado de durabilidade, que podia ser guardado preservando sua natureza. Esse bem, inicialmente, foi o sal retirado das minas terrestres na forma de placas, servindo como meio de troca e, portanto, como moeda. O trabalho terceirizado por um patrão entre seus empregados podia ser pago em sal. O salário correspondia ao pagamento (em sal) de um dia de trabalho. O surgimento dessa moeda permitiu a evolução da troca para o contrato de compra e venda com todos os ganhos jurídicos e econômicos dele advindos. Por sua vez este cenário deu lugar a um operador profissional da distribuição de bens, o intermediário comerciante.

O desenvolvimento desse bem intermediário de trocas, que não nos interessa neste momento, levou à criação da moeda metálica, válida porque feita de metal nobre que tinha valor intrínseco, podendo ser entesourada, e servindo como reserva de valor

O crescimento das sobras da produção, aliado aos deslocamentos geográficos para comunidades cada vez mais distantes, proporcionou a descoberta e o desejo por bens produzidos em outros lugares, deste fato tendo sobressaído em importância a pessoa do mercador, aquele que viajava para terras até então desconhecidas e delas voltava com os seus navios ou camelos carregados de bens que provocavam desejo como, por exemplo, as especiarias destinadas à conservação e dar melhor sabor dos alimentos; sedas utilizadas para a confecção de vestimentas; e assim por diante. Até pavões e bugios entravam nesse intercâmbio.

Dando um pulo muito longo na história e vindo para a Idade Média na Europa, sabe-se chegavam àquele continente produtos valiosos da África e da Ásia, vindos de lugares tão distantes como a Índia e a China; veja-se, a respeito, entre outras fontes, a história da famosa e demorada viagem de Marco Polo. Sabemos também que no interior de alguns países da Europa, especialmente em França, foram realizadas grandes feiras, para as quais acorriam compradores e vendedores de várias regiões, criando mercados gerais ou específicos.

As mais famosas das feiras tiveram lugar na região da Champagne, na França, nada obstante tendo em conta a necessidade de serem enfrentados e superados inúmeros obstáculos. Um mercador que chegasse a um porto do Mediterrâneo desejoso de oferecer seus produtos em alguma de tais feiras (desde que tivesse escapado dos piratas) teria diante de si a sanha financeira dos governantes das cidades portuárias e de todos os senhores feudais cujas terras atravessassem com suas mercadorias.

Quanto aos compradores, a questão do transporte do dinheiro, que poderia ser tomado por salteadores nas estradas, havia sido superada pelo nascimento e desenvolvimento da letra de câmbio, que lhes permitia sacarem títulos daquela espécie junto aos banqueiros de suas cidades de origem e os descontarem junto aos banqueiros correspondentes ou mercadores nas feiras. Como se sabe, as letras de câmbio representaram uma das mais notáveis criações do direito comercial em todas as épocas.

Diante desse cenário, o único elemento que permitiria o estabelecimento das feiras e do comércio nelas realizado era a pré-existência de uma base jurídica uniforme, que foi sendo criada e que se desenvolveu ao longo de muitas décadas, permitindo aos comerciantes e banqueiros a necessária segurança para a celebração de contratos e o seu cumprimento. Esta base jurídica, portanto, precedeu, ou ao menos facilitou não só o nascimento daqueles mercados como sua consolidação.

Tal fenômeno já fora identificado por Goldschmidt quando afirmou que os negócios eram realizados nos confins de vários territórios (nos quais certamente era disperso ou praticamente inexistente o império dos governantes circunvizinhos), muitas vezes sob uma tutela religiosa, dando nascimento a uma paz comercial de forma expressa ou tácita, ainda que temporária. Naquelas condições foram formadas caravanas de peregrinos e comerciantes, dirigindo-se aos locais protegidos na forma acima, nos quais o comércio se desenvolveu e se solidificou .

Conforme aquele historiador, no contexto específico da profissão de comerciante, nasceu o direito comercial a partir do desenvolvimento do direito estatutário, consuetudinário, de práticas notariais, de contratos escritos e de tratados comerciais e de navegação além das corporações de artes e ofícios e tribunais especiais.

Não sendo o caso neste breve texto de se fazer um maior aprofundamento do tema, a verdade é que o mercado depende de uma base jurídica prévia para formar-se e se desenvolver. Fora disto as operações praticadas pelos interessados se dão primitivamente fora do mercado, de maneira pontual e isolada, sem qualquer proteção contra o inadimplemento, baseadas tão somente na confiança pessoal de uma parte em relação à outra.

Podemos dizer que são encontrados três tipos de mercados, segundo a sua origem, todos construídos sobre uma base jurídica: (i) os espontâneos, formados, pouco a pouco, conforme a respectiva estrutura jurídica e econômica evolui historicamente; (ii) aqueles que, uma vez existentes e em funcionamento, são objeto de normas interventivas do Estado para corrigir suas falhas ou para direcioná-los de forma construtiva ou, o que é muito ruim, de maneira ideológica e/ou voluntarista; e (iii) mercados criados artificialmente a partir de suporte jurídico econômico/ideológico, com o fim de atingir objetivos buscados pelo Estado.

Os primeiros são aqueles estudados pelos historiadores da economia e do direito, notando-se entre os primeiros, por exemplo, a introdução da famosa mão invisível de Adan Smith.

Os segundos, vê-mo-los todos os dias, nos bons e nos maus exemplos. As raízes dos maiores problemas sociais e econômicos enfrentados por diversos países da América Latina, v.g., está precisamente na tentativa da criação de mercados artificiais por meio de um suporte legal distorcido em relação aos princípios econômicos, opção que geralmente parece acertada no começo, mas que se auto destrói ao longo do seu desenvolvimento. Afinal de contas o dinheiro é um bem escasso, jamais encontrado em árvores, tal como foram as promessas mentirosas que no século retrasado eram impingidas a imigrantes humildes, arregimentados por coyotes na Europa. Esta é precisamente uma das causas mais importantes dos males pelos quais o Brasil passa atualmente.

Os terceiros mercados se colocam dentro de projetos desenvolvimentistas, como aconteceu com a criação da SUDAM, SUDENE, SUDEPE, etc. No primeiro dos modelos acima o objetivo era integrar o extremo norte do Brasil ao resto do País, tornando aquela região parte do sistema de produção e consumo nacional. Para que objetivo em tela possa ser alcançado em alguma medida, o segredo de tal tipo de iniciativa está em que ela deve ser necessariamente temporária, pois se a autonomia econômica não é alcançada em um tempo ótimo, o projeto se converte em mais uma ferida que sangra a economia nacional, fazendo-a funcionar artificialmente.

Nos Estados Unidos, cujo pensamento econômico é fundamentalmente o da livre iniciativa (com os todos os riscos de ganho ou de perda e ela inerentes), aos pioneiros era dada a oportunidade de ocupar uma nova fronteira para a criação de gado e para a agricultura e, dali para a frente, que se virassem. Nunca houve bolsa fazenda e o dinheiro emprestado junto aos bancos tinha que ser pago no prazo ou a hipoteca era invariavelmente executada. Podemos pensar que o mecanismo é cruel e desumano, mas, convenhamos, que economia está melhor, a nossa ou a deles? Como consequência eles desfrutam de um bem-estar e de um nível de vida infinitamente acima da eterna miséria brasileira, com a exceção de ilhas econômicas desenvolvidas, aqui chamadas apropriadamente de "califórnias", existentes apesar do governo.

Quando o saudoso Código Comercial de 1850 conceituou o comerciante como aquele que praticava a mercancia de forma profissional e habitual (art. 4º), em seguida, nos diversos institutos ali disciplinados, foi dada por aquele documento, de forma sábia, toda a base jurídica que orientaria a atividade a ser exercida em mercados. Não se pode, portanto, dizer que caminhamos da mercancia para o mercado - pois os termos são em grande parte sinônimos -, mas que todos os destinatários estavam seguros dos seus direitos e obrigações no campo da atividade mercantil que pretendessem exercer ou que nela de alguma forma viessem a atuar.

Tal como as histórias infantis, esta aqui também deve ter um fundo moral. Ou o Brasil aprende esta lição sobre a precedência das práticas negociais modeladas pelo direito ou o mercado não será eficiente. É preciso que o suporte jurídico seja compatível com a ciência econômica, ou continuaremos patinando entre o terceiro mundo e o primeiro, na eterna condição de emergentes.

Reforce-se bem o que foi dito acima. Como o direito é a base para a estruturação do mercado, não pode ele contradizer, por sua vez, o que a ciência econômica construiu ao longo de séculos. Não adianta baixar lei determinando a revogação da lei da gravidade porque isto viola a física e jamais acontecerá. Afinal de contas, se erros foram cometidos não é possível dar pedaladas fiscais para trás, mas tão somente seguir em frente na direção do buraco.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior do departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados.

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