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Relativização de estupro de vulnerável, por Eudes Quintino e Pedro Bellentani Quintino

Relativização de estupro de vulnerável

Não se critica a aplicação pura e simples do texto e sim que seja conferida a ele uma elasticidade interpretativa mais abrangente para se buscar o fim colimado.

domingo, 6 de setembro de 2015

Atualizado em 4 de setembro de 2015 16:08

Interessante decisão foi proferida pela 3ª seção do STJ, com relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, a respeito dos recursos repetitivos, com a finalidade de orientar o procedimento de casos idênticos com posições contrárias que aportam no Tribunal da Cidadania. Trata-se de um crime de estupro, já com a tipificação da reforma de 2009 do CP, envolvendo uma menina menor de 14 anos com um jovem adulto, fato ocorrido no Estado do Piauí. O casal vinha se relacionando há algum tempo e tinha até permissão dos pais para que dormissem como marido e mulher na casa da família. A sentença condenou o namorado a cumprir a pena de 12 anos de reclusão, inicialmente em regime fechado, por ter praticado estupro de vulnerável (art. 217-A), em continuidade delitiva. Foi interposta apelação e o Tribunal de Justiça reformou a sentença de primeiro grau decretando a absolvição do namorado, justamente por entender que o conceito de vulnerabilidade deveria ser analisado de forma criteriosa, sem se ater unicamente ao fator etário.

Em recurso especial interposto pelo MP, o STJ refutou o acórdão. Entendeu que, com a reforma do CP, a tipificação contida no art. 217-A é específica e cai por terra a presunção de violência consagrada no artigo 224. Resumidamente, assim decidiu:

"Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime".1

Tal decisão dá o contorno de engessamento do tipo penal, não permitindo ao Judiciário qualquer outra apreciação, a não ser a relevância da idade. A interpretação judicial, diferentemente da autêntica, analisa as hipóteses individualmente, sem generalizá-las, oferecendo soluções adequadas e convenientes às necessidades sociais. É o narra mihi factum, dabo tibi jus (narra-me o fato que entregarei o direito correspondente a ele). Oportuna a conclusão de Biaggio Brugi, citado por Maximiliano, no sentido de que "o aplicador do Direito, na porfia de fixar o significado das frases de uma norma positiva, deve levar em conta a atmosfera espiritual que o circunda, e, com esta orientação luminosa, infundir à palavra nua e elástica do legislador a perpétua juventude da vida".3

O Direito, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais como um instrumento voltado para atender as necessidades do Homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada.

Daí surge a necessidade de se fazer a interpretação de cada conduta humana. Às vezes, aparentemente, são iguais, porém dicotomicamente guardam uma diferença abissal. Se o operador do Direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. E, no campo penal, em muitos casos, limitará a abraçar a responsabilidade objetiva, tão ferreamente contestada. Aplica-se o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".3

A ministra Maria Thereza de Assis Moura, também do STJ, em outra câmara, em caso anterior em que se perquiria a ocorrência de crime de estupro envolvendo menores de 14 anos e que já se prostituiam, assim se manifestou: "O direito não é estático, devendo, portanto, se amoldar às mudanças sociais, ponderando-as, inclusive e principalmente, no caso em debate, pois a educação sexual dos jovens certamente não é igual, haja vista as diferenças sociais e culturais encontradas em um país de dimensões continentais. Com efeito, não se pode considerar crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado - a liberdade sexual -, haja vista constar dos autos que as menores já se prostituíam havia algum tempo".4

No caso ora analisado, a menor de 14 anos vinha tendo uma vivência marital com o acusado, com a aquiescência paterna. O envolvimento amoroso era marcado pela espontaneidade e sinceridade, tudo favorável para a constituição de uma nova família, com a prole desejada. É de se imaginar a aplicação de uma pena tão severa ao companheiro, com repercussão social negativa, até mesmo com sérios danos à família e aos filhos, que ficarão sem entender a prisão do pai.

A título comparativo, mas com outro enfoque jurídico, e até mesmo por curiosidade, no estado da Pensilvânia (EUA), uma professora foi considerada culpada por ter mantido relação sexual consensual com um aluno maior de idade. Isto porque, a legislação local proíbe a prática de sexo entre professores e alunos de qualquer idade.5

O cerne da questão reside justamente em saber se a idade, por si só, é circunstância elementar indispensável para a caracterização do ilícito ou se há necessidade de se debruçar sobre o caso apresentado visando buscar elementos que demonstrem que, apesar da idade, a pessoa já tinha maturidade suficiente para se definir a respeito da prática sexual. Parece que a interpretação recomendável para o caso seja abandonar o critério de idade e avançar para uma interpretação mais elástica da restrita prescrição legal, chegando a perscrutar as condutas anteriores comprometedoras da vítima e, em razão delas, eliminar qualquer aresta de vulnerabilidade. Em outras palavras, não é pelo fato de contar a vítima com menos de 14 anos que, por si só, configuraria o ilícito.

É certo que, no momento atual, em razão das radicais transformações dos costumes, é temeroso dizer que uma adolescente menor de 14 anos seja desconhecedora das práticas sexuais. Conhece sim e muitas vezes já vem exercendo com frequência, até mesmo em se prostituindo com a conivência dos pais para ajudar no sustento da casa. Sem falar ainda da compleição física avantajada que induz o agente ao erro com relação à idade. Mas, em Direito, cada caso é um caso e merece a atenção adequada pela forma que se apresenta.

Não se critica a aplicação pura e simples do texto e sim que seja conferida a ele uma elasticidade interpretativa mais abrangente para se buscar o fim colimado, que é a adequação legal do fato de acordo com o bem social. Exige um estudo aprofundado, uma adequação acertada, pois é do atrito das realidades que se encontra a justiça, assim como do atrito das pedras brota o fogo.

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1 A posição do relator foi acompanhada de forma unânime pelos ministros da Terceira Seção. Voto disponível em: https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/Estupro_Vulner%C3%A1vel_Repetivivo.pdf
2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pág. 146.
3 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.
4
https://www.migalhas.com.br/quentes/153347/editorial-migalhas-comenta-decisao-do-stj-sobre-estupro-de-menores
5 https://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/2015/09/professora-pode-pegar-7-anos-por-fazer-sexo-com-aluno-maior-de-idade.html

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto;






*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, mestrando em Direito pela Unesp de Franca/SP, pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/SP, advogado.


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