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Criminalidade organizada versus Estado desorganizado: notas sobre a conceituação de crime organizado

Somente com a publicação da lei 12.694/12, o tópico da organização criminosa recebeu definição válida, pois elaborada através de procedimento legislativo ordinário, conforme o comando constitucional.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Atualizado em 6 de novembro de 2015 14:44

Com a edição da lei 9.034/96 o legislador amoedou no ordenamento pátrio a expressão "organização criminosa", com o escopo de ajustar nosso sistema frente ao cenário global no enfrentamento à criminalidade complexa e estrutural. Considerando o grau de avanço de outros países, acerca do comprometimento no combate ao crime organizado e a lavagem de capitais, a providência revelou-se tardia1. Todavia, ainda que nos fosse dado celebrar a existência de uma lei destinada a repressão da nova criminalidade, não tínhamos uma definição taxativa do que deveria ser considerado crime organizado.

O Prof. Cezar Bitencourt, a propósito do tema, assevera que "é objeto de grande desinteligência na doutrina especializada, tornando-se verdadeira vexata queastio. A essa dificuldade somava-se o fato de que nossa legislação não definia o que podia ser concebido como uma organização criminosa, a despeito de todas as infrações penais envolvendo mais de três pessoas serem atribuídas, pelas autoridades repressoras, a uma 'organização criminosa'. (.) Nem mesmo na Lei 9.034/96, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, desincumbiu-se desse mister."2

Neste mesmo (des)compasso, o legislador tratou de atrair outras dispositivos para o conceito (inexistente) de "organização criminosa", como foi o caso do § 2º, art. 31, da (revogada) lei 10.409/023. Até mesmo a jurisprudência, à época, era intranquila no emprego da terminologia trazida pela lei 9.034/96, porquanto era uma "figura ainda não definida em nosso ordenamento penal, sob pena de violação ao princípio da reserva legal."4

À mostra de uma melhor compreensão, a respeito da intenção do legislador, devemos recordar que a Lli 9.034/96 também trazia consigo um dispositivo que previa a possibilidade de algumas diligências serem realizadas pessoalmente pelo julgador, circunstancia que, sem maiores embargos, à vista da fulgente ofensa aos princípios da imparcialidade e do devido processo legal, foi declarada inconstitucional pelo STF na ADIn 1.5705.

Pouco tempo mais tarde, na esteira de absoluta ausência conceitual, o decreto 5.015 de março de 2004, que entre outras atribuições, tratou de internalizar o conceito de organização criminosa aprovou o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, reunião ocorrida em Nova York e, batizada de Convenção de Palermo6.

Contudo, talvez por inspiração no decreto, o legislador continuou agrupando dispositivos ao pseudo conceito, como por exemplo, a exigência de não integrar organização criminosa conferida na Lei de Drogas.7 As decisões, por seu turno, também contribuíam para a autofagia do sistema aplicando o § 4º do art. 33, da lei 11.343/068.

Não obstante é preciso considerar que extrair um conceito de direito material, adotando como fundamento um decreto legislativo, viola o Princípio da Legalidade. A transgressão da norma no âmbito de um postulado de limitação material implica que "en el procedimiento de formación de la ley penal, el respeto de los requisitos mínimos del Estado de derecho, en lo que concierne a la representatividad de la asamblea legislativa y a su funcionamiento regular; en particular, a la participación popular en la formación de la voluntad legislativa mediante elecciones libres y secretas y la libre organización de los partidos y de los movimientos políticos."9

Destaca-se, no entanto, a interessante deliberação no bojo do HC 20090020149364 (TJ/DF), julgado em novembro/09, no campo da Lei de Lavagem de Dinheiro, que embora acolhida a tese da deficiência conceitual, e os problemas de se ter uma definição penal extraída a partir de um decreto legislativo, consignou que "a ausência de definição legal do que venha a ser organização criminosa, no crime previsto no art. 1º, VII, da Lei n.º 9.613/98, não ofende o princípio da legalidade".

A instabilidade sobre o tema chegou ao ponto de até lei estadual já se propôs a conceituar o que seria crime organizado, obrigando o STF a dizer - em verdade, o que não precisava ser dito - que "o conceito de 'crime organizado' é matéria reservada à competência legislativa da União, tema interditado à lei estadual, à luz da repartição constitucional (art. 22, I, CRFB)".10

O panorama doméstico, entretanto, desde sempre se apresentou sintomático: a concepção de organização criminosa entre o advento da lei 9.034/96 e a vigência da lei 12.694/12 era extraída como consequência do excerto no decreto 5.015/04, que promulgava a denominada Convenção de Palermo. Atualmente, temos o mesmo conceito insculpido paralelamente na lei 12.850/13. Basicamente, é preciso pontuar, que antes não tínhamos nenhum conceito, logo em seguida um conceito inválido, e atualmente temos dois conceitos regulando a mesma situação.

Porém, mesmo antes da publicação da primeira lei "definidora" (12.694/12), o STF reconheceu que a carência de lei em sentido formal e material, seria malversação do Princípio da Legalidade, e, portanto, capaz de retirar a validade do conceito de organização criminosa, até então amparado unicamente com base no decreto 5.015/04.11

Em que pese a produção legislativa que concebeu a coexistência de dois conceitos, o primeiro trazido pela lei 12.694, e o segundo na lei 12.850/13, face a lei nova, a alegação de duplicidade conceitual encontra barreira na hipótese carreada pelo § 1º, art. 2º da LINDB: "A lei posterior revoga a anterior (.) quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."

O Princípio da Legalidade, tal como inscrito no art. 5º, XXXIX, CF, confere segurança jurídica e garantia do cidadão, sobretudo ao prescrever que "somente por lei, em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, o Estado poderá legislar sobre matéria penal"12. À teor do arranjo no art. 84, XII, CF13, outras espécies legislativas podem dispor em matéria criminal, desde que, frise-se, para beneficiar o réu.

Desta forma, nota-se que ao longo dos anos, na mesma velocidade em que criminalidade organizada se tornava (mais) complexa, o ordenamento refletia a mesma intensidade, tornando-se extremamente heterogêneo à lidar com o tema. Mesmo com as divergências carreadas pela lei 9.034, foi preciso mais de quase quinze anos até que "a legislação brasileira foi agraciada com duas definições de organização criminosa."14 Nessa linha, não se pode deixar de notar a (in)sensibilidade do legislador no desenvolvimento da temática. Não por outro motivo, é o questionamento proposto por Turessi: "como combater a criminalidade organizada, de forma minimamente eficiente, manejando-se essas ferramentas legais?"15.

No entanto, somente com a publicação da lei 12.694/12, o tópico da organização criminosa, recebeu definição válida, pois elaborada através de procedimento legislativo ordinário, conforme o comando constitucional.

Assim, qualquer entendimento que se possa dar, precisa obrigatoriamente partir do princípio que organização criminosa pressente o obrar coletivo de um número indeterminado de sujeitos, "como su propio nombre indica, un tipo de actividad delictiva cuyo rasgo diferencial radica en la organización y planificación"16, visando a obtenção de vantagem, financeira ou política, através de múltiplos atos ilegais, ou de aparente legalidade, mas com a disposição do uso de ameaça, violência, corrupção, como forma de garantir a proteção e a viabilidade das suas operações.

Atualmente, acerca da aplicação da lei 9.613/98, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "é atípica a conduta capitulada no art. 1º, inciso VII, da lei 9.613/98 - a qual foi imputada ao recorrente -, pois, à época dos fatos narrados na denúncia (1998 a 2005), não havia definição jurídica na legislação pátria para 'organização criminosa'."17 Considerando, sobretudo, que a "Convenção Internacional de Palermo, incorporada ao direito positivo brasileiro pelo decreto 5.015/04, não supriu essa omissão, conforme assentado majoritariamente pela Corte no julgamento da AP n° 470/MG".18

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1 Não é demasiado lembrar que a Lei de Lavagem de Capitais (L 9.613/98) reflete o compromisso do estado brasileiro assumido na Convenção de Viena em 1988. Porém no final dos anos 70, a Itália fora um dos países pioneiros a elaborar um dispositivo legal referente a Lavagem de Dinheiro. (SILVA, César Antônio da. Lavagem de Dinheiro, Uma Nova Perspectiva Penal. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 2001. p. 34).

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Primeiras reflexões sobre organização criminosa. In: JusBrasil. Disponível em: <https://cezarbitencourt.jusbrasil.com.br/artigos/121936003/primeiras-reflexoes-sobre-organizacao-criminosa>. Acesso em set 2015.

3 § 2º O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa (.).

4 (Habeas Corpus Nº 70006826143, Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, Julgado em 23/09/2003).

5 (.) Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. (.) (ADI 1570, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 12/02/2004, DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046 RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838).

6 O Decreto 5.015, define organização criminosa como o "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;".

7 Art 33, § 4º, Lei 11.343, publicada em 23 de agosto de 2006: "as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente (.) não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa."

8 TJRS, nº 70031067580, julgado em Dezembro de 2011: "para que a apelante faça jus a minorante em apreço, é necessário (.) não integrar organização criminosa."

9 BARATTA, Alessandro. Principios de derecho penal mínimo, in Criminologia y sistema penal (Compilación in memoriam). Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 307.

10 (ADI 4414, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 14-06-2013 PUBLIC 17-06-2013).

11 (HC 96007, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 12/06/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 07-02-2013 PUBLIC 08-02-2013 RTJ VOL-00224-01 PP-00427).

12 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 41.

13 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(.)
XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;

14 MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. Op. cit.

15 TURESSI, Flavio Eduardo. Breves apontamentos sobre crime organizado, deleção premiada e proibição da proteção penal insuficiente. Revista Jurídica ESMP-SP, vol. 3, 2013, pag. 238.

16 GIMÉNEZ-SALINAS FRAMIS, Andrea, REQUENA ESPADA, Laura y DE LA CORTE IBÁÑEZ,
Luis. ¿Existe un perfil de delincuente organizado? Exploración a partir de una muestra española. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2011, núm. 13-03, p. 03:1-03:32. Disponible en internet:
https://criminet.ugr.es/recpc/13/recpc13-03.pdf
ISSN 1695-0194 [RECPC 13-01 (2011), 12 jun].

17 STF, RHC 124082.

18 Idem ibidem.

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Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Primeiras reflexões sobre organização criminosa. In: JusBrasil. Disponível em: <https://cezarbitencourt.jusbrasil.com.br/artigos/121936003/primeiras-reflexoes-sobre-organizacao-criminosa>. Acesso em set 2015.

GIMÉNEZ-SALINAS FRAMIS, Andrea, REQUENA ESPADA, Laura y DE LA CORTE IBÁÑEZ, Luis. ¿Existe un perfil de delincuente organizado? Exploración a partir de una muestra española. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2011, núm. 13-03, p. 03:1-03:32. Disponible en internet:
<
https://criminet.ugr.es/recpc/13/recpc13-03.pdf> ISSN 1695-0194 [RECPC 13-01 (2011), 12 jun].

MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. O conflito conceitual de organização criminosa nas Leis nº 12.694/12 e 12.850/13. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 121, fev 2014. Disponível em: <https://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14278&revista_caderno=3>. Acesso em set 2015.

MINGARDI, Guaracy. O estado e o crime organizado. São Paulo: IBCCRIM : Complexo Jurídico Damásio de Jesus, 1998. 239 p. (Monografias, 5).

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

TURESSI, Flavio Eduardo. Breves apontamentos sobre crime organizado, deleção premiada e proibição da proteção penal insuficiente. Revista Jurídica ESMP-SP, vol. 3, 2013, pag. 238.

SILVA, César Antônio da. Lavagem de Dinheiro, Uma Nova Perspectiva Penal. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 2001.

SILVA, Davi André Costa; EBERHARDT, Marcos. Leis penais e processuais penais comentadas. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008.

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*José Carrazzoni é advogado.

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