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STF: Nova formatação de prisão, por Eudes Quintino

STF: Nova formatação de prisão

Com fundamento nesse sistema de controle, a liberdade do cidadão poderá sim ser cerceada pelo Estado, desde que sejam cumpridas as regras estabelecidas constitucionalmente.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Atualizado em 19 de fevereiro de 2016 15:32

É interessante observar que a população brasileira, em sua grande maioria, após a prática de algum crime que tenha alardeamento público com divulgação pelas mídias, indaga a respeito da prisão antecipada e a pena a ser aplicada, em caso de condenação, como provável herança das Ordenações. E tal pensamento tem como fonte propulsora a criminalidade crescente e avassaladora, que instala um clima de total insegurança, fazendo com que cada um possa eleger a segregação dos infratores como a solução para estancar a violência. Não se pode olvidar que vários diagnósticos a respeito da criminalidade foram apresentados erigindo-a à categoria de problema científico, mas os métodos apresentados para solucioná-la foram frustrados.

A recente decisão proferida pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal deu nova formatação à prisão, permitindo-a após a confirmação da sentença condenatória em julgamento de segunda instância, sem a necessidade de se aguardar eventual recurso interposto pelo sentenciado. Tal decisão modifica postura anterior do mesmo Tribunal que considerava que a sentença só seria considerada definitiva depois de esgotados todos os meios recursais.

Com todo o respeito que merece a mais alta Corte do país, é inegável que a decisão provocará intensos debates. A postura garantidora constitucional até então era no sentido de que toda pessoa só seria declarada culpada após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, de acordo com o estabelecido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal. Com tal premissa fica explicitado que a regra é a liberdade, assim como, da mesma forma, a inocência deve prevalecer enquanto não proclamada judicial e definitivamente em sentido contrário. Isto porque, na dimensão defensiva, o contraditório e ampla defesa, instrumentos basilares no Estado Democrático de Direito, com os meios e recursos inerentes à defesa do cidadão, com suporte constitucional no art. 5º LV, não impõem restrições e nem mesmo limitações ao exercício do direito de defesa, que deve navegar pelo mais amplo canal processual.

Qualquer interpretação em contrário, mesmo alicerçada na necessidade de se combater a morosidade da Justiça e a sensação de impunidade, ou até mesmo para garantir o prestígio das decisões de primeira e segunda instâncias, abre um rombo no sistema constitucional até então garantidor dos direitos assegurados aos acusados que, apesar de condenados em segunda instância, lutam ferreamente pela inocência em instância superior. E pior. A decisão de culpabilidade pela segunda instância não é definitiva, pois se assim for considerada, suprimir-se-á outra instância recursal, que poderá reverter o decisum colegiado e acarretar irreparável prejuízo ao cidadão, em razão da segregação injusta.

É inquestionável que o país vive uma crise de valores com reflexos diretos na área penal e que exige do Estado soluções mais do que imediatas para garantir a segurança pública, visando colocar um fim no círculo de inconformismo que provoca verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade. Assim, na cruzada persecutória, muitos processos vão tramitando e inundando todas as instâncias, provocando uma verdadeira asfixia jurisdicional. Mas tal fato, por si só, em termos de resposta social, não justifica sacrificar dogmas defensivos e levar à prisão outra população carcerária idêntica ou maior que a atual, cujo sistema já se encontra falido há muito tempo.

É compreensível a força motivadora que determinou a decisão da Suprema Corte para dar ressonância ao clamor popular visando coibir a impunidade e fazer a entrega de uma prestação jurisdicional mais célere. É o que realmente todo cidadão ambiciona. É providência urgente e necessária que os próprios operadores do direito reclamam. Porém, nenhuma decisão pode afrontar a Constituição, lei fundamental que confere estabilidade não só jurídica, como também política e social, principalmente quando afronta as cláusulas consideradas pétreas. E, para que não haja abuso, o próprio poder tem o dever de deter o poder quando a flexibilidade confere aos juízes a possibilidade de modificar a lei para atender os anseios da sociedade, segundo o pensamento de Montesquieu, no Espírito das Leis.

Os princípios filosóficos que nortearam as declarações universais dos direitos dos homens e que se alojaram em nossa Constituição como o reconhecimento do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, fazem ver que a liberdade é conteúdo programático indissociável dos direitos fundamentais do homem e se insere de forma absoluta entre os postulados do Estado de Direito. Com fundamento nesse sistema de controle, a liberdade do cidadão poderá sim ser cerceada pelo Estado, desde que sejam cumpridas as regras estabelecidas constitucionalmente.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.



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