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Opinião: "Publicidade infantil não foi proibida no Brasil!"

José Henrique Vasi Werner e Patrick Barros Rahy

O que a sociedade espera é a ampliação do debate e a correta regulamentação da matéria.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Atualizado em 30 de maio de 2016 07:11

O debate sobre a publicidade infantil no Brasil tem sido cada vez mais presente nos canais formadores de opinião, como internet, televisão, jornais, revistas e redes sociais, tendo sido até mesmo tema da redação do Enem em 2014.

Recentemente, a discussão ganhou um novo capítulo, em razão do julgamento de um caso específico pelo STJ (ainda não transitado em julgado), que sustou determinada campanha publicitária dirigida ao público infantil.

O Recurso Especial acima mencionado (REsp 1.558.086/SP) teve origem em ACP movida pelo MP/SP em face da empresa Pandurata Alimentos Ltda. ("Bauducco"). Em síntese, o MP/SP objetivava o fim da campanha "É Hora de Shrek", alegando que a publicidade fundava-se em venda casada de relógios de pulso com a imagem do personagem "Shrek", pois o produto só poderia ser obtido em troca de 5 embalagens dos produtos "Gulosos" e mais R$ 5 (cinco reais) - com o alegado agravante de a mercadoria ser dirigida ao público infantil.

Após o juiz de 1ª instância julgar a ação improcedente, o MP recorreu ao TJ/SP que, por sua vez, entendeu que houve prática de venda casada, pois "os consumidores somente poderiam adquirir o relógio se comprassem 05 produtos da linha "Gulosos" e ainda pagassem a quantia de R$ 5. A venda do relógio, portanto, estava condicionada à compra dos bolinhos e biscoitos. Sem estes, aquele não poderia ser adquirido. Essa prática é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro. O consumidor não pode ser obrigado a adquirir um produto que não deseja".

Diante disso, decidiram os desembargadores da 7ª câmara de Direito Privado pela condenação da "apelada a não mais adotar prática comercial que implique em condicionar a aquisição de um bem ou serviço à compra de algum de seus produtos e não mais promover campanha de publicidade para as crianças, sem estrita observância das regras próprias".

Como se observa, o acórdão condenou a Bauducco a cessar as práticas comerciais de venda casada, isto é, "condicionar a aquisição de um bem ou serviço à compra de algum de seus produtos". Portanto, em outras palavras, o TJ/SP vedou tão somente as práticas consideradas abusivas, relativas àquela publicidade específica, que tinha como único elemento de direito a "venda casada".

E o que fez o STJ no julgamento do Recurso Especial? Simplesmente manteve a decisão do TJ/SP em toda a sua essência, sem maiores formulações.

Logo, conclui-se que a proibição da publicidade dirigida ao público infantil somente ocorreu porque o TJ/SP entendeu ter havido venda casada. Além disso, não resta dúvida de que o julgamento limitou-se ao caso específico, sem maiores generalizações.

Em outras palavras, o Tribunal recriminou a prática de impor ao consumidor a compra de um produto que não deseja, o que vai de encontro ao CDC, e não o fato isolado de a publicidade ser dirigida ao público infantil. Aliás, muito ao contrário: ao determinar expressamente que a campanha publicitária para crianças deve observar "as regras próprias", o Judiciário reafirma que a publicidade infantil é, sim, permitida! E essas regras próprias são nada menos que o CDC e o ECA, respaldados pela CF.

O primeiro Diploma Legal citado define como abusiva, dentre outras, a publicidade que "explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança" (CDC, artigo 37, parágrafo 2º). O ECA, por sua vez, estipula em seus artigos 3º e 58 que os pequenos também "gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se lhes todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social", "garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura". Já a Constituição, em seu artigo 220, garante que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição".

Logo, a opção do legislador, em consonância com o espaço de liberdade garantido pela Constituição, foi a de não proibir toda publicidade voltada ao público infantil, mas apenas "aquela que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança". Portanto, ao confirmar a vedação à prática de venda casada supostamente imposta aos consumidores infantis pela Bauducco, o STJ só demonstra que o cenário atual não é de proibição, mas sim de suficiente regulamentação da publicidade infantil, por meio do ECA, do CDC, da Constituição e do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Entender de forma diversa seria atribuir ao Judiciário a competência de legislar! Isso porque, não tendo o legislador formulado norma proibindo a publicidade infantil, não cabe ao STJ fazê-lo, sob pena de afronta ao artigo 2º da Constituição.

No entanto, muitos meios de comunicação, alimentados pelo radicalismo de certas organizações privadas, estão publicando notícias equivocadas quanto ao conteúdo e reais efeitos da decisão do STJ, afirmando tratar-se do "fim da publicidade infantil".

Obviamente, isso não é verdade!

A matéria publicada pelo próprio STJ sobre o tema, intitulada "Segunda Turma mantém condenação de empresa por publicidade infantil indevida: A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve nesta quinta-feira (10) a condenação proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) de uma empresa do ramo alimentício por publicidade voltada ao público infantil, caracterizada como venda casada" , já seria suficiente para comprovar que não houve a suposta proibição da publicidade infantil.

Diante disso, a verdade é que o Tribunal Superior limitou-se a julgar, com base na legislação vigente aplicável, "um caso típico de publicidade abusiva e de venda casada, igualmente vedada pelo CDC, numa situação mais grave por ter como público alvo a criança".

Isso é corroborado também pelo voto da ministra Assusete Magalhães, ao final do acórdão, que resume de forma elucidativa o que realmente estava sendo discutido: "Não há dúvida de que estamos diante de um caso típico de propaganda abusiva, vedada pelo Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, mais especificamente no seu art. 37, e também diante de um caso de venda casada, que, como muito bem disse nosso professor de Direito do Consumidor, o Ministro HERMAN BENJAMIN, igualmente é vedada pelo art. 39, I, do Código de Defesa do Consumidor. Penso eu que, nessa hipótese fática, a situação é ainda mais grave, por ter, como público alvo, a criança (...)."

Ou seja, a publicidade daquele caso concreto foi considerada abusiva por realizar a venda casada, sendo certo que a decisão não impacta toda a indústria, mas tão somente a propaganda "É Hora do Shrek", da Bauducco. O fato de se tratar de produto infantil foi tido apenas como agravante do objeto principal da lide: a venda casada.

Mesmo assim, determinados meios de comunicação, provavelmente induzidos a erro por representantes de entidades privadas que apoiam o fim da publicidade infantil, vêm publicando trechos de um suposto "voto" do ministro Herman Benjamin que sequer consta do acórdão!

De fato, diversas matérias transcreveram a fala do ministro como se voto fosse, quando, na verdade, eram apenas trechos retirados dos debates dos julgadores durante a sessão. Agora, com a publicação da íntegra, verifica-se que esses trechos sequer fizeram parte do acórdão - ou seja, não integraram a decisão.

Nada custa lembrar o brocardo latino "quod non est in actis non est in mundo" ("o que não está nos autos não está no mundo"), que apesar de tratar primordialmente da questão da prova nos autos, serve perfeitamente para ilustrar o que ocorre nessa situação.

O que o STJ decidiu foi tão somente um caso concreto de alegada venda casada, confirmando o entendimento do TJ/SP em condenar uma única empresa a cessar tal ato considerado abusivo. Não se trata, portanto, do fim da publicidade infantil, como alguns veículos divulgaram, e sim da confirmação por um Tribunal Superior de que, no Brasil, existe a efetiva regulamentação de propagandas dirigidas ao público infantil, dentro do que a lei considera "publicidade abusiva", mas sem ferir a liberdade de expressão e o direito à informação.

Dessa forma, o julgado do Tribunal da Cidadania é, de fato, histórico, pois consignou, de uma vez por todas, que a publicidade infantil é sim permitida pelo ordenamento pátrio, mas estará sempre sujeita ao controle de legalidade do Poder Judiciário, caso se mostre nociva ou abusiva, nos termos da lei.

É exatamente isso que se espera de um país que exerce a sua democracia: abrir mão do radicalismo, da censura e da proibição irrestrita, para dar lugar ao bom senso, ao equilíbrio, à liberdade de expressão e à regulamentação razoável, de forma a atender todos os princípios basilares e preceitos fundamentais da nossa Carta Magna.

O que a sociedade espera, portanto, é a ampliação do debate e a correta regulamentação da matéria e não a proibição irrestrita e desenfreada, típica de regimes totalitários e ditatoriais.

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*José Henrique Vasi Werner é sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados.

**Patrick Barros Rahy é advogado.

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