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O Silêncio dos Inocentes e a Gritaria Histérica da Sociedade

As recentes notícias sobre os casos de estupros coletivos em que os delinquentes estão soltos no Brasil por "falta de provas materiais" e a culpabilização da vítima têm sido pauta nos debates do movimento Mais Mulheres no Direito.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Atualizado às 11:17

"Em todas as coisas, especialmente nas mais difíceis, não devemos esperar semear e colher ao mesmo tempo, mas é necessária uma lenta preparação para que elas amadureçam gradativamente." (BACON, Serm. fidel, n. XLV)

As recentes notícias sobre os casos de estupros coletivos em que os delinquentes estão soltos no Brasil por "falta de provas materiais" e a culpabilização da vítima têm sido pauta nos debates do movimento Mais Mulheres no Direito.

Nosso grupo, formado por operadoras do Direito de todo o país e de todas as áreas, está trazendo reflexões profundas que saem das discussões virtuais e estão fazendo parte dos jantares com amigas, almoço com a família, em todo lugar em que podemos - aliás, devemos - falar sobre o estupro, sua cultura e como combatê-lo.

Infelizmente, o silêncio é a linguagem padrão para este tipo de crime. E não somos nós que dizemos: desde que o mundo é mundo, o estupro é pouco abordado. Diná, a primeira vítima de que temos conhecimento, é "desflorada" por Siquem. A história, consta no capítulo 34 do livro de Gênesis, tem apenas o segundo versículo descrevendo o delito ("viu-a, e deitou-se com ela, e humilhou-a"). E só.

O crime em si passou batido. Primeiro, tentou-se um matrimônio para que Diná não ficasse desonrada. Curioso que a vergonha não era pelo crime e sim por ela ter sido estuprada por um não-circuncidado, que logo foi resolvido com a circuncisão; quando estavam com fortes dores, os irmãos da vítima fizeram o que hoje chamamos de vingança com as próprias mãos ao matarem todos os homens de heveu, inclusive o cunhado estuprador, saquearam a aldeia, fizeram das mulheres e crianças escravos com a justificativa de que "pois faria ele a nossa irmã como a uma prostituta?".

Em todo o capítulo 34 a palavra Deus não aparece em nenhum momento. Mesmo sendo um dos mais tementes ao Criador, Jacó não buscou Nele justiça. Coincidência? Não: um crime entre homens deve ser resolvido entre homens, certo?

A humanidade decidiu ao longo dos séculos que a melhor maneira de resolver conflitos é pela lei. E não somente a lei e o respeito a ela e sim sua aplicação em todas as etapas para sua melhor execução; uma sociedade civilizada não precisa apenas de boas leis e sim de pessoas preparadas para usá-las.

Em nossas discussões, a advogada cearense Isabel Mota mostrou o quanto é importante termos peritas mulheres para melhor prestar atendimento às vítimas de violência de qualquer natureza. Peritas estas capacitadas com conhecimentos de Direito, psicologia e medicina para garantir a coleta das provas sem, com isso, causar mais traumas às vítimas.

E não somente peritas: faltam ainda as escrivãs e delegadas mulheres com competências para registrarem e encaminharem as investigações com agilidade, para resguardar também as provas no local do crime.

É inaceitável que tanto as autoridades competentes quanto a imprensa estejam tratando estupradores de uma menina de 16 anos por 33 homens como acusados e não pelo que são: criminosos, sem custódia prévia e investigações mais rigorosas. Em seu clássico "Dos Delitos e das Penas", Cesare Beccaria classificou como delitos de difícil prova o adultério e a homossexualidade. O estupro, por sua vez, tem sido debatido no mundo baseado no consentimento da vítima - no Reino Unido, por exemplo, a legislação de 2003 classifica o crime mesmo quando há consentimento desde que seja por abuso de poder ou confiança (muito comum em abusos em crianças). Sendo assim, um vídeo publicado na internet, o coma, o sangue e a calcinha usada como mordaça não são provas materiais? E os depoimentos dos "acusados", que admitiram ter feito sexo com a menor?

Como também é inaceitável a opinião pública que faz papel de Justiça ao condenar a vítima em ré como se já não houvesse pena maior do que a que ela já tem. Pior ainda é como Beccaria classifica como "falsas ideias de utilidade" em que legisladores aproveitam para defender penas mais duras e até mesmo descabidas, como a castração química.

Uma sociedade como a brasileira que se esquiva do debate e discute a conduta da vítima em vez de meditar sobre o sistema jurídico e seus efeitos é conivente com a violência e tão criminosa quanto os 33 homens que estupraram a menina do Rio de Janeiro.

Nós, do Mais Mulheres no Direito, estamos preparadas para seguir as sugestões de Beccaria: "Quereis prevenir delitos? Fazei com que as luzes acompanhem a liberdade. Os males nascidos dos conhecimentos estão na razão inversa de sua difusão e os bens, na razão direta". Este é o momento em que a população não pode cair em promessas de fórmulas mágicas e sim fazer do tema um debate contínuo e não pontual. Responsável e estudado ao invés do baseado em achismos como vemos agora. Sim, é o momento para repúdio e levantes mas, acima de tudo, para começar com palavras a desfazer a trama do silêncio que acompanha o estupro desde Dina até os dias de hoje. Um tema que começou no passado e hoje se faz tão presente. Será com muitas discussões e conhecimento que as "luzes derramadas em profundeza sobre a nação que cala-se a ignorância" farão do Brasil, o florão amado da América, o iluminado sol do novo mundo paras estas, mas, principalmente, para o futuro vindouro.

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*Ivy Farias é jornalista e estudante de Direito da PUC/SP. É militante dos Direitos Humanos e dos animais e co-fundadora do movimento Mais Mulheres no Direito. Para entrar em contato com o movimento, acesse
https://goo.gl/L8mhTV.

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