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Limites legais dos ofendículos, por Eudes Quintino e Antonelli Secanho

Limites legais dos ofendículos

A questão é apenas verificar se há excesso nas armadilhas empregadas para atingir ladrões que, sabidamente, estão cada dia mais perspicazes e audaciosos, mas que podem, também, atingir pessoas inocentes.

domingo, 3 de julho de 2016

Atualizado em 1 de julho de 2016 10:18

De quando em quando a imprensa publica algum fato relacionado com a utilização de ofendículos e que tenha provocado a morte de determinada pessoa. Recentemente, noticiou-se que uma criança, de dez anos de idade, brincava com seu coelho de estimação quando, inesperadamente, o animal se dirigiu para o quintal do vizinho. A criança, na plenitude de sua ingenuidade, perseguiu o pequeno animal e ingressou no imóvel alheio, oportunidade em que acabou por acionar o sistema de segurança (rústico, em verdade), e provocou o disparo de uma espingarda. Foi alvejada por um projétil, que determinou sua morte1.

Prima facie, há que se destacar o que a doutrina conceitua como ofendículos (offendiculas ou offensaculas), que nada mais são do que aparatos facilmente perceptíveis e cuja destinação é a proteção da propriedade (cacos de vidro ou lanças colocados em cima dos muros; cerca eletrificada com identificação e aviso; cão bravio também com identificação no imóvel; arame farpado, etc).

E aproximando-se do caso ora relatado, tem-se a definição do eminente jurista Mirabete: "são aparelhos predispostos para a defesa da propriedade (arame farpado, cacos de vidro em muros, etc.) visíveis e a que estão equiparados os 'meios mecânicos' ocultos (eletrificação de fios, de maçanetas de portas, a instalação de armas prontas para disparar à entrada de intrusos, etc"2.

Desta forma, uma primeira conclusão é evidente: o ofendículo precisa ser visível e, ainda, proporcional à conduta de defender a propriedade. Ou seja, se o dono do imóvel instala uma cerca elétrica, porém diretamente conectada com a rede elétrica da via pública, cujo choque provoque a morte instantânea de quem quer que nela encoste, certo é que não há falar em proteção lícita. Do mesmo modo, o proprietário que instala um campo minado em seu jardim, ou coloca um verdadeiro arsenal militar como forma de proteção, também se afasta, e muito, do conceito da razoabilidade conceitual.

Cabe, aqui, a preciosa lição de Magalhães Noronha:

Quem eletrifica a porta de sua casa, que dá para a calçada da rua, age com culpa manifesta, senão com dolo, pois qualquer transeunte pode tocar ou encostar nela. Entretanto, quem assim fizer com a porta de uma casa rodeada de jardins e quintais e cercada de altos gradis e muros, de modo que é necessário a escalada, à noite, para tocar naquela, não age com culpa stricto sensu. De observar ainda que na predisposição de meios deve haver também moderação - outro requisito da justificativa. Pode se proteger o patrimônio, v. g., com uma corrente elétrica, não é preciso que seja fulminante: uma descarga forte dissuadirá o mais animoso amigo do alheio3.

Sendo assim, o proprietário que, de modo legítimo, vale-se desses artefatos de proteção, certamente não comete crime algum, posto que sua conduta é lícita, autorizada pelo ordenamento jurídico.

Com efeito, nossa doutrina é clara em reconhecer que os ofendículos, quando proporcionais, excluem a tipicidade do fato. Todavia, nossos autores divergem, e muito, quanto à causa de excludente de ilicitude que melhor se adequa ao tema: legítima defesa (putativa ou não) ou exercício regular de um direito?

De um lado, destacam-se os seguidores de Aníbal Bruno, para o qual a utilização de ofendículos revela-se como um exercício regular de um direito. Por outra banda, os seguidores do posicionamento preconizado por Nelson Hungria, segundo o qual é caso de legítima defesa preordenada.

Sem se olvidar ainda de Damásio de Jesus que, de modo bastante apropriado, propõe uma mistura entre as duas teorias anteriores: quando os ofendículos são instalados, tem-se o exercício regular de um direito; porém, uma vez acionados, configura-se a legítima defesa (teoria mista).

De qualquer modo, trata-se, neste ponto, de discussão meramente acadêmica, uma vez que, sob uma argumentação ou outra, o fato será igualmente atípico. Assim, percebe-se que o tema é bastante tortuoso e faz com que o intérprete possa cometer exageros, tanto para adequar, de modo típico, uma conduta, quanto para concluir ser o fato atípico.

Isso porque, o fato concreto pode trazer elementos que façam com que a utilização proporcional dos ofendículos possa trazer dúvidas quanto a eventual exagero (desproporção) do meio empregado para repelir alguém que, indevidamente, ingresse na propriedade alheia.

Com efeito, será que a instalação de uma armadilha, que dispara uma espingarda em direção a alguém que acione o mecanismo de defesa, é proporcional?

Sob o prisma do cometimento de um crime de roubo, parece que sim. O agente que invade, armado, uma residência, coloca em risco a vida das pessoas que ali residem. Não por outra razão é que, infelizmente, tem-se cotidiana a prática de latrocínio. Logo, o bem sacrificado (vida do roubador) é igual ao bem tutelado (vida dos moradores - veja-se: é mais que a mera propriedade).

Por outro lado, o ingresso do inocente no imóvel, causando sua morte por acionar dispositivo de defesa, pode implicar em responsabilização penal do proprietário? Uma alternativa viável para se chegar a alguma conclusão pode ser a ponderação de valores: quando o bem sacrificado possui menor ou igual valor ao protegido, tem-se por lícita a conduta.

A contrario sensu, quando o bem sacrificado possui maior valor que o protegido, o excesso pode ser reconhecido (no caso em apreço, o bem "vida" da criança é maior que o bem "propriedade" do dono da residência).

E ainda que reconhecido o excesso, ele seria culposo ou doloso?

A armadilha está no interior da residência, somente podendo atingir quem, de modo inapropriado, ingresse no imóvel. Logo, parece rigorosa, por demais, a configuração do elemento doloso. De qualquer modo, afasta-se a pretensão de esgotar o tema ou atingir-se uma conclusão insofismável. O que se propõe é o precioso debate, sobre as inúmeras possibilidades jurídicas que este caso impõe. E o Direito, pela sua riqueza argumentativa, encarrega-se de cristalizar uma interpretação que represente a univocidade do interesse geral.

Especialmente porque a vítima foi uma criança com apenas dez anos de idade, o que torna as consequências mais drásticas, não só para os familiares. Muitos defenderão que o proprietário tem o pleno poder de repelir a injusta invasão que, eventualmente, possa vir a sofrer, sobretudo nos dias atuais, em que a violência atinge níveis alarmantes em todo o país. E carregados de razão. A questão é apenas verificar se há excesso nas armadilhas empregadas para atingir ladrões que, sabidamente, estão cada dia mais perspicazes e audaciosos, mas que podem, também, atingir pessoas inocentes.

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1 No AP, criança morre após entrar em quintal e ser baleada por armadilha.

2 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal- Parte Geral, p. 190, 8ª edição.

3 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. v. 1, 35° Ed. São Paulo, Saraiva, 2000, p. 197.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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