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Breves notas sobre a reconstrução da ética: da academia ao tribunal

O novo Código de Ética veio em boa hora, quando nada, para exortar os advogados mais jovens, que não tiveram a oportunidade de receber, no bacharelado, lições, ainda que esparsas e esporádicas.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Atualizado em 7 de julho de 2016 14:52

Sumário

1. Crise da ética forense

2. Estéril exortação do novo Código de Ética

3. Contribuição da academia

Bibliografia

1 Crise da ética forense

A satisfação e o prazer em advogar - outrora tão exaltados por Calamandrei - encontram-se em sensível queda livre, diante dos múltiplos dissabores que o exercício profissional tem revelado nestes últimos tempos.

A incivilidade que exorna atualmente o ambiente forense foi destacada, de forma contundente, pelo colega Manuel Alceu Affonso Ferreira, em artigo que merece ser lido e que constitui importante repositório de memória àqueles que, como eu, recordam-se, com um certo saudosismo, das relações bem mais cordiais que marcavam o relacionamento entre os protagonistas da justiça. Invocando este passado, já remoto, Manuel Alceu enfatiza os tempos

"em que o data venia não constituía sinal de fraqueza ou de rendição ao adversário; nos quais os advogados falavam em pé, pediam licença e protestavam respeitos, esmeravam-se na conjugação verbal, na pluralização e nas concordâncias; em que magistrados não encaravam como impertinente, por isso assumindo fisionomias agressivas e carrancas belicosas, o causídico que buscava um urgente despacho ou, a propósito dessa urgência, tecia breve exposição presencial; a época em que inexistia a surpreendente categoria hoje formada pelos que, nos tribunais, 'não recebem advogados', dessa recusa se jactando; os julgamentos transparentes, com os seus votos abertamente proclamados sem o humilhante apelo à reles leitura (per saltum e geralmente inaudível...) de ementas nada esclarecedoras [...]" (FERREIRA, 2014, p. 50-51). E isso tudo, sem contar, entre muitas outras facetas da crônica forense, circunstância deveras inusitada, pautada pela prepotência, na qual alguns desembargadores sentiram-se ofendidos com crítica, séria, científica, impessoal e, sobretudo, educada, a tese jurídica sustentada em acórdão lavrado pela respectiva turma julgadora, e, por este motivo, passaram, de forma vingativa e sem qualquer escrúpulo ético, a desmoralizar o autor do escrito!

Sabe-se outrossim que esse relacionamento esgarçado tem sido também observado nas relações cotidianas entre advogados, ou melhor, entre advogados mais experientes e muitos (nem todos, é evidente) jovens colegas, sobretudo porque estes, mal informados (e, sem dúvida, mal educados), a pretexto de defenderem os interesses do cliente, imaginam que o patrono do ex adverso é seu próprio "inimigo"! O comportamento descortês de tais profissionais é verificado, com frequência, nas audiências e até mesmo nas salas de sessão dos tribunais.

Neste sentido, vale recordar (não pela primeira vez) que, há poucos meses, tive de reagendar um importante compromisso para estar presente a uma sessão de julgamento, visando a sustentar oralmente na defesa do direito do meu cliente. Depois de algum tempo, fui informado, pelo respectivo desembargador presidente, de que o caso fora adiado a requerimento da outra parte. Na nova data designada para o exame da apelação, encontrei-me com o jovem advogado, integrante de uma conhecida banca de São Paulo, que havia solicitado o adiamento e lhe questionei a razão pela qual não havia me comunicado previamente seu pedido de adiamento. O "colega" simplesmente disse-me - curto e grosso (na acepção da palavra) - que não havia texto legal algum que o obrigava a me transmitir tal informação. Sem comentários!

No contexto de uma experiência jurídica, como a do Brasil, na qual o advogado exerce atividade indispensável à administração da justiça e é investido de função pública, dúvida não há de que juízes e advogados são inseridos moralmente, ainda que não materialmente, no mesmo plano axiológico. Desse modo - afirmava Calamandrei -, o juiz que falta ao respeito para com o advogado e, também, o advogado que não tem deferência para com o juiz ignoram que magistratura e advocacia obedecem à lei dos vasos comunicantes: não se pode baixar o nível de uma sem que o nível da outra desça na mesma medida.

Aos profissionais que assim agem, falta-lhes, como é curial, rudimentar conhecimento de deontologia (teoria dos deveres) forense!

2 Estéril exortação do novo Código de Ética

Diante deste cenário, vale frisar que o novo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vem em boa hora, quando nada, para exortar os advogados mais jovens, que não tiveram a oportunidade de receber, no bacharelado, lições, ainda que esparsas e esporádicas, de um professor atento à relevância da deontologia forense, ou, ainda, a ventura de ter tido um preceptor conselheiro, como referência, como paradigma, no difícil início do exercício profissional.

Conferindo redação bem mais abrangente de norma já contida no velho diploma, dispõe, com todas as letras, o art. 27 do novo Código de Ética que:

"O advogado observará, nas suas relações com os colegas de profissão, agentes políticos, autoridades, servidores públicos e terceiros em geral, o dever de urbanidade, tratando a todos com respeito e consideração, ao mesmo tempo em que preservará seus direitos e prerrogativas, devendo exigir igual tratamento de todos com quem se relacione".

A responsabilidade moral e ética de cada ser humano, a rigor, não deveria estar disciplinada por normas preestabelecidas, visto que decorre como consequência natural do berço, da vida em sociedade, do homem em suas relações vitais e comunicativas.

Todavia, como há inexoráveis desvios, que se fazem intoleráveis, torna-se de todo recomendável que seja estabelecido um standard, um padrão, a possibilitar delimitação objetiva à liberdade de escolha desta ou daquela conduta ética. A ética normatizada tem, pois, a função de fixar algumas premissas, básicas e mínimas, de comportamento profissional, simplesmente para viabilizar necessário controle corporativo e institucional.

Mesmo com a vigência do novo Código de Ética e Disciplina da OAB, a regrar várias e importantes vertentes da advocacia, lamento não prever que a atuação desrespeitosa - sempre crescente, entre os operadores do Direito, especialmente nos domínios da advocacia contenciosa - irá se modificar, de um momento a outro, arrefecendo aquele referido conjunto de atitudes moralmente reprováveis.

De qualquer forma, não há dúvida de que as entidades de classe da advocacia, da magistratura e do Ministério Público têm a missão institucional de qualificar os seus profissionais, não lhes cobrando apenas capacidade técnica, mas, sobretudo, envidando esforços para lhes infundir percepção humanista e ética!

Observo que, no exercício da atividade docente há mais de três décadas, aliada a ininterrupto exercício da advocacia por mais tempo ainda, detenho razoável experiência para asseverar que, neste proscênio desafiador, as instituições de ensino jurídico, de um modo geral, têm muito a contribuir para uma estratégia de resgate, de verdadeira reconstrução da deontologia forense.

3 Contribuição da academia

Muito além da análise e avaliação dos conteúdos programáticos oferecidos, é preciso fazer emergir uma compreensão ampla e integrada do curso de bacharelado nas respectivas faculdades, a qual vai das finalidades e objetivos sociais aos formatos pedagógicos possíveis.

O curso de Direito que todos desejamos deve centrar nos valores humanos uma dimensão fundamental. Cada instituição tem o dever de agregar ao seu mister pedagógico a obrigação de formar bacharéis éticos.

Nesta exata direção, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco representa, hoje, o resultado de fecunda tradição e de acentuados elementos culturais que determinam um forte sentimento de integrar uma comunidade que tem procurado, ao longo dos anos, enriquecer os seus alunos, como indivíduos e cidadãos.

A Congregação das Arcadas, em busca de um projeto pedagógico voltado para o futuro, discutiu profundamente, ao longo do ano de 2015, questões atinentes ao ensino do Direito, tendo diagnosticado uma assimetria considerável, entre o passado e o presente, no que concerne aos costumes e hábitos do alunado.

O formato ainda obsoleto do ensino jurídico, no âmbito de um meio social no qual as informações são virtuais e em tempo real, não mais combina com a figura do professor austero, de cenho fechado. A responsabilidade moral e ética de cada ser humano não deveria estar disciplinada por normas preestabelecidas.

À luz desta significativa premissa, o relacionamento entre docente e aluno tende a ser cada vez mais distanciado. E, com isso, a camaradagem, o respeito mútuo, a ironia refinada e a sutileza inteligente deixam de revestir as relações pessoais do dia a dia da academia. Tudo se passa de forma impessoal e burocrática; ou, como diria com maior precisão Manuel Alceu, "Tudo é glacial, lapônio, desprovido de afetuosa exteriorização" (FERREIRA, 2014, p. 50). É evidente que tal comportamento indesejado, nestes últimos anos, já vem importado extramuros, de fora para dentro dos umbrais da Faculdade de Direito.

Daí por que desponta o papel fundamental a ser exercido pelo corpo docente. Pressupondo que a atividade do magistério visa à formação científica e cultural dos futuros bacharéis e que os respectivos professores detêm, como é cediço, enorme capacidade de influência no comportamento dos estudantes, não se pode descurar o ensino da deontologia, mesmo que em doses pequenas, mas constantes; sem cessar.

A obtenção de resultados satisfatórios por meio desta estratégia de ensino recomenda, com certeza, a adoção de nova postura didática.

É, sem dúvida, do ato de ensinar e interpretar as regras, da dialética docente-discente, qualquer que seja a disciplina jurídica, que são extraídas as situações cotidianas que exigem um senso ético comum, o qual, por mais óbvio que seja, não pode deixar de ser explicado, contextualizado e repetido aos alunos.

Se o processo educativo provoca reflexão e almeja lapidar o aluno, é natural que a sua própria ética venha condicionada por valores hauridos no processo de aprendizagem. É, com efeito, impossível dissociar, ao final da formação de um indivíduo, a orientação educacional que teve ao longo dos anos do conjunto de atributos éticos que marcam a sua personalidade (cf. BITTAR, 2013, p. 411).

Além de seus objetivos mais imediatos de ensino, pesquisa e difusão do conhecimento, e a despeito da crescente especialização disciplinar, os cursos de Direito atualmente têm, pois, uma missão institucional igualmente precípua, qual seja a de formar bacharéis que saibam valorizar e robustecer os princípios éticos que regem as relações interpessoais no exercício profissional.

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Bibliografia

BITTAR, Eduardo. Curso de ética jurídica. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.

FERREIRA, Manuel Alceu Affonso. Funeral da cordialidade.
Revista da CAASP, São Paulo, ano 3, n. 14, dez. 2014.

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*O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, Ano XXXVI, de Abril de 2016, nº 129.

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*José Rogério Cruz e Tucci é advogado. Ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo. Professor titular e diretor da Faculdade de Direito da USP.

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