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É preciso acabar de vez com o bloqueia-e-desbloqueia do WhatsApp

Por favor, acudam, não matem o mensageiro!

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Atualizado em 27 de julho de 2016 12:00

O bloqueia-e-desbloqueia do aplicativo de mensagens WhatsApp tem causado um grande rebuliço e transtornos. E já pela terceira vez. Para alguns desavisados, pode até mesmo parecer um tema simples, já que Marco Civil da Internet prevê a hipótese de suspensão temporária das atividades como sanção prevista e, portanto, aplicável. Contudo, não é tão simples assim, há mais coisas a ver.

As decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça do Piauí, de São Paulo e de Sergipe, naturalmente que cada qual com o seu conteúdo e cada uma com a sua razão de decidir, ao determinarem o bloqueio do aplicativo, mostram que o buraco é mais profundo do que se supõe.

De um lado temos a autonomia judicial, sujeita aos mecanismos próprios de controle, e de outro temos a população, prejudicada até mesmo no mundo dos negócios, sem sequer ter feito parte da discussão que deu azo à sanção. No afã de punir a empresa, puniu-se a sociedade, nas três vezes em que o bloqueio do aplicativo já ocorreu. Agiu-se como o temido Gengis Khan, que matava o mensageiro sempre que as mensagens não lhe eram boas.

O juiz pernambucano Demócrito Reinaldo Filho1 relembra que um dos pensadores da internet, o norte-americano Lawrence Lessig2, lá nos idos de 1999, nutria a ideia de que no ciberespaço as leis, tais como as concebemos e as conhecemos, não teriam o mesmo valor, a mesma relevância. Se lá, naquele contexto de nascimento da Internet, essa teoria tinha algum sentido, nos dias atuais, onde Governos e nações assumem papel cada dia mais regulador do ambiente cibernético, essa visão purista da internet parece menos pertinente.

Antes, bastavam dois adolescentes, um deles dotado de uma ideia e o outro de um computador, para que surgisse um novo serviço ou negócio online. Hoje, porém, o comércio eletrônico e a informação digital tomaram conta das nossas vidas de tal modo que a regulação da rede se tornou coisa urgente. Percebeu-se que as leis já existentes poderiam ser aplicadas nos ambientes virtuais, mas careciam de certos ajustes. Daí que nasceram normas e convenções específicas regulando o funcionamento democrático desse universo.

No caso do WhatsApp, a defesa da privacidade dos usuários do aplicativo tem sido o argumento empresarial central utilizado para justificar a impossibilidade (e inadequação) de promover o bloqueio universal do aplicativo. E é mesmo um excelente argumento. Já a segurança pública, notadamente em tempos de fortes ondas de atentados terroristas mundo afora, é o contraponto estatal a esse argumento, que também é excelente.

Mas a questão vai muito além disto, e muito além mesmo! O argumento certo, ao que parece, passa pela adequada resposta à seguinte indagação: a regulação das relações sociais na internet cabe às empresas ou ao Estado?

Se entendermos que cabe às empresas, então o WhatsApp, ou melhor, a empresa que o controla estará certa ao, supostamente, alegar estar tutelando a privacidade dos usuários para forçar que o seu software possa se sobrepor à lei, mais ou menos na mesma linha defendida por Lessig, lá no início da internet. Se, no entanto, entendermos que quem pode regular essas relações é mesmo o Estado, então o quadro é outro.

No último caso de bloqueio judicial, enfrentado por uma juíza do Rio de Janeiro, a empresa controladora do WhatsApp negou-se a atender ordem judicial de fornecimento de dados almejados em investigação criminal ao argumento de que não copiava e não mantinha arquivos das mensagens trocadas entre os seus usuários. A juíza, ao ordenar o bloqueio, sustentou corretamente que as empresas de tecnologia, naquilo que respeita ao processamento de dados de brasileiros, devem se sujeitar às leis brasileiras, consoante o que determina o art. 21 do novo CPC e art. 11 do Marco Civil, e que o argumento da empresa de que não tem meios técnicos para cumprir a ordem judicial não se sustentava, diante do que afirmavam os peritos da Polícia Federal e da Polícia Civil, em sentido oposto.

Segundo a juíza, ainda que o WhatsApp se utilize de sistema de encriptação de ponta-a-ponta, não armazenando as mensagens e arquivos trocados pelos usuários em seu servidor, não haveria empecilho algum para o cumprimento da ordem judicial, uma vez que ela [a juíza] não estava requisitando "o envio de mensagens pretéritas nem o armazenamento de dados", mas sim "a desabilitação da chave de criptografia, com a interceptação do fluxo de dados, com o desvio em tempo real em uma das formas sugeridas pelo MP, além do encaminhamento das mensagens já recebidas pelo usuário e ainda não criptografadas, ou seja, as mensagens trocadas deverão ser desviadas em tempo real (na forma que se dá com a interceptação de conversações telefônicas), antes de implementada a criptografia".

Até aí, a ordem judicial andava bem. E não obstante tenha a magistrada intencionado demonstrar sensibilidade e preocupação com os impactos sociais de sua decisão e reflexos sobre os usuários ao reconhecer que "o aplicativo WhatsApp possui mais de 1 (um) bilhão de usuários em todo [o] mundo", sendo certo que o "BRASIL é o segundo país com maior número de usuários, atrás apenas da África do Sul", e que "segundo relatório divulgado pela entidade, 76% dos assinantes móveis no Brasil fazem uso regular do WhatsApp, que é o comunicador instantâneo mais popular no País", ao ordenar o seu bloqueio, acabou por impactar esse contingente de pessoas ao dizer-se estar dando maior relevância à preservação da ordem jurídica, em que uma empresa de tecnologia de ponta não pode desenvolver um sistema, explorar o mercado, obter lucros e simplesmente não se submeter ao crivo do judiciário brasileiro.

A intenção judicial foi boa, mas o remédio para curar o mal se tornou veneno. Parece não haver dúvidas de que a recalcitrância da empresa controladora do WhatsApp em cumprir ordens de juízes brasileiros foi que verdadeiramente levou, mais uma vez, ao bloqueio do aplicativo. Essa empresa parece mesmo não aceitar que deve se submeter à jurisdição nacional. O seu discurso, como se disse, é o da privacidade dos seus usuários, mas há mais coisa nessa cumbuca.

Caso semelhante corre nos Estados Unidos, onde FBI e Apple se digladiam em torno da criação de uma chave capaz de contornar o sistema de criptografia dos iPhones de suspeitos de atos terroristas. Apple lá, WhatsApp aqui travam embates com as autoridades em torno da privacidade dos seus usuários, arranhadas que ficaram (tanto nas suas imagens como nos seus cofres) com as denúncias feitas por Edward Snowden indicando-as como colaboradoras do esquema massivo de vigilância mundial executado pela NSA em favor do governo norte-americano. Mais que uma sincera e genuína ação empresarial que vise à proteção da privacidade dos usuários, tudo pode não passar de um (até compreensível) esforço de recuperação da confiança e dos milhões de dólares perdidos naquele episódio.

O judiciário brasileiro insiste que a empresa controladora do WhatsApp faça ajustes em seu sistema para permitir interceptações do conteúdo das mensagens, nos moldes do que ocorre na já conhecida e vastamente praticada interceptação telefônica, sempre que uma investigação criminal assim o justifique. E faz realmente muito sentido.

Pode-se até mesmo questionar a prática da interceptação, tal como a conhecemos hoje, e essa é questão por demais delicada, como nós advogados bem sabemos, mas se ela for seguida da devida ordem judicial, adequadamente calibrada para atender investigação criminal já em curso, com evidências suficientes a justificar a medida, sem excessos e sem abusos de autoridade, então não se deve matar o mensageiro.

Alguém duvida que já exista tecnologia disponível para isto? Pessoalmente, não só não duvido, como apostaria que ela já exista. Aliás, nem mesmo me convenço de que de fato não haja armazenamento de mensagens trocadas entre os usuários ou da real capacidade criptográfica desse sistema. O que parece certo que não existe é disposição das empresas de tecnologia em se submeter à jurisdição brasileira ao fazerem negócios por aqui.

Acontece que está lá, clara e nitidamente estampada em nossa Constituição, no seu art. 5º, XII, a possibilidade de interceptação de dados e comunicações (inclusive telemáticos), para fins de investigação criminal e instrução processual penal, sempre que seguidas da devida ordem judicial. A lei 9.296/96 regulamentou esse dispositivo constitucional, estabelecendo as formas como essa quebra de sigilo deve ocorrer e o que fazer com aquilo que não interesse à instrução processual como elemento de prova.

A lei 12.965/14, que cria o Marco Civil da Internet, reproduz a mesma regra constitucional permitindo a interceptação de dados, o que mostra que se a alegada criptografia do aplicativo WhatsApp não permite a interceptação das mensagens, especificamente para o fim de dar suporte à investigação criminal, tal como alega a empresa, o sistema, então, não está adequado às nossas leis, podendo até mesmo ser considerado ilegal.

Não é razoável cogitar que a lei deve se ajustar aos interesses empresariais para preservar um modelo de negócios de forte e inegável apelo social. Nem as empresas, nem os benefícios e facilidades que os sistemas oferecem à sociedade, menos ainda os maus usuários da rede, podem se sobrepor à ordem jurídica. Se há lei, que seja ela respeitada e cumprida. Empresas, governos, governantes e usuários, todos estão abaixo dela. Havendo desvio de conduta passível de punição, puna-se. É para isto que existem as leis.

O poder das grandes corporações não pode se sobrepor ao do Estado, este é o único legitimado para regular a sociedade. Cabe ao Estado exigir dessas corporações a obrigação de adequar os seus sistemas de modo a preservar a privacidade dos usuários em condições normais de uso da aplicação e, ao mesmo tempo, havendo adequada ordem judicial, colaborar com as nossas autoridades como forma de demonstrar que realmente nutrem respeito ao Brasil e aos brasileiros, tanto quanto dizem nutrir.

Só assim, deixaremos de ver e ouvir o cansativo "samba do bloqueia-e-desbloqueia" do WhatsApp por estas bandas. Por favor, acudam, não matem o mensageiro!

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1 CODE IS NOT LAW - O Whatsapp precisa se submeter ao império das leis nacionais, em https://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=306

2 "Code and Others Laws of Cyberspace", em https://code-is-law.org/

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*Sérgio Palomares é advogado e fundador do escritório Palomares, Vieira, Frota e Nunes Advogados e Consultores Legais.

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