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Tributo ao pai, por Eudes Quintino

Tributo ao pai

Falar para o pai e a respeito dele é sempre uma tarefa difícil, quer esteja ele presente ou não.

domingo, 14 de agosto de 2016

Atualizado em 12 de agosto de 2016 11:38

Falar para o pai e a respeito dele é sempre uma tarefa difícil, quer esteja ele presente ou não. Você pode ter a mais singela formação, desde aquela que provoca os calos duramente fincados em seu corpo, como a melhor experiência de vida, a sabedoria como estandarte, a poesia como tesouro para fazer coro com a mais bela canção, que irá estancar num repente fazendo com que o espaço reservado às palavras fique ziguezagueando à sua frente, sem rumo, aguardando que as fibras do sentimento se comprimam para produzir a peça desejada.

A figura do pai é marcante na educação do filho. A mãe, por sua própria natureza, é mais próxima, interage mais, antecipa as eventuais discórdias, consegue fazer uma leitura mais adequada do pensamento do filho e, a todo instante, como se fosse uma caçadora de pokémon, aciona seu radar, explora as regiões de frequência do filho e, a um simples touch na tela do celular, encontra seu 'bichinho' e, por mais evoluído que seja, captura-o com facilidade.

O pai já não trabalha com tanta agitação. É mais circunspecto, avalia ponderadamente as situações, sente a responsabilidade do sustento da família. Pensa em silêncio e se preocupa com o futuro profissional dos filhos. Reflete em seu canto preferido a respeito dos paradoxos do mundo, sem muito entender, mas com maturidade suficiente para ensinar que a vida não é um projeto de utopias e quimera em que os sonhos são vendidos e sim um palco onde possa ser produzida e encenada a peça mais bela que o homem pode escrever.

E é lógico que vai querer falar muitas coisas a respeito de seu pai e é bem capaz que com a chegada das agitadas memórias, que são muitas, incontáveis e que não respeitam o posicionamento na fila, irá atropelar as letras do teclado, tamanha sua pressa em expressar seu sentimento, num verdadeiro ordenamento desordenado. O difícil é que um fato evoca outro na sequência e você fica dividido na narrativa porque quer fazer uma composição com todos os tons e letras do momento vivido, mas não consegue captar suas cores e se esquece que se esfarelam com o passar do tempo.

Mas, mesmo assim, procurando se ajustar, vai configurando um espaço reservado para buscar e retirar de lá imagens de seu pai, todas guardadas com muito respeito e carinho. Abrir as comportas da infância, dissipar as cortinas de fumaça e encontrar seu herói, seu paladino, com poderes quase divino, a protegê-lo nesta aventura maravilhosa chamada vida, espaço propício para dimensionar o amor humano. Verá que é uma tarefa reservada a super-heróis e seu pai lá está entronizado, com toda pompa e circunstância. Mesmo que seja herói limitado, somente para você.

Então você vai entrar em estado de graça e vai se lembrar daquele homem com olhar meio esgazeado, da voz mansa ou altiva, capaz de estabilizar o equilíbrio para vencer as borrascas, dos gestos nem sempre bem distribuídos, dos passos quase sempre apressados, do silêncio que substituía as respostas, das palavras fincadas na razão, de corpo nanico, mas um gigante destemido, daquele que, diante de todas as dificuldades, muitas delas aparentemente instransponíveis, sempre o segurava pela mão, verdadeiro guia olímpico, e jamais perdia a vontade de chegar ao pódio.

Vai se lembrar dos sábios conselhos, repetitivos até, que você sempre rotulava de desnecessários, mas que, com o passar do tempo, começou a elegê-los como prioritários. Você aprendeu que para subir à montanha a estrada é uma só e o atalho, que você tanto insistia, podia levar ao abismo. Você vai ver as coisas com mais vagar, pegar carona na maneira simples e prazerosa como ele encarava a vida, as gargalhadas sem fim, suas historias e piadas envelhecidas, seu jeito franco e despojado de narrar seu assunto predileto, seu jeito desajeitado de fazer um afeto, sua invejável calma, sem traumas.

Cada um, nas suas andanças, carrega no seu alforje as lembranças do pai, esteja ele vivo ou não. Curta-as à vontade, até a exaustão. Faz bem para alma e coração.

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