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O achocolatado e o Direito Penal, por Eudes Quintino e Antonelli Secanho

O achocolatado e o Direito Penal

Quando várias condutas humanas se interligam de forma dissociadas e aparentemente sem nexo, ao intérprete resta analisá-las individualmente para perquirir a real intenção dos agentes, a fim de encontrar uma correta valoração penal.

domingo, 18 de setembro de 2016

Atualizado em 16 de setembro de 2016 12:57

Recentemente, foi noticiado que uma criança, com apenas dois anos de idade, faleceu, por envenenamento, após ter ingerido uma bebida achocolatada. Assim, após as perícias e as diligências de praxe, logrou-se descobrir que uma pessoa, constantemente vítima de furto em sua residência, para se vingar do larápio, que tinha predileção pela bebida, cuidadosamente injetou veneno em algumas embalagens de achocolatado1.

Todavia, o furtador não ingeriu a bebida, mas sim a vendeu para uma família, que por seu turno, forneceu o achocolatado ao filho, de dois anos de idade, que veio a falecer.

De imediato, como era de se esperar no meio jurídico, começaram a fervilhar interessantes questões sobre o lamentável caso. Há crime? Qual? Quem é autor? Crime doloso ou culposo?

Prima facie, faz necessária uma rápida abordagem sobre os ofendículos, termo denominado, pela doutrina, para os dispositivos que os proprietários instalam como forma de repelir eventual ingresso criminoso nas residências: aparatos facilmente perceptíveis, cuja destinação é a proteção da propriedade (cacos de vidro ou lanças colocados em cima dos muros; cerca eletrificada com identificação e aviso; cão bravio também com identificação no imóvel; arame farpado etc.)2.

Não obstante, é sabido que não é dado ao proprietário instalar meios camuflados de proteção, tais como um campo minado no quintal; cerca elétrica cuja voltagem mata instantaneamente; arsenal militar direcionado à entrada da casa etc.

Nesse passo, no caso em comento, verifica-se que não era lícita a conduta da vítima que, visando se vingar do contumaz furtador, injeta veneno para matar ratos nas embalagens de achocolatados.

Ora, não sendo visível ou perceptível o meio que repele a injusta agressão patrimonial, não há que se falar em legítima defesa ou exercício regular de um direito, situações estas existentes quando se vale, a contrario sensu, do ofendículo.

E não se pode olvidar, ainda, que não é dado à vítima querer proteger seu patrimônio, sacrificando um bem de maior valor (vida do agente). Ainda que se verifique preocupante descrença dos cidadãos nas leis vigentes, a ninguém é lícito reagir de forma injusta a uma agressão, sendo necessária a comunicação do crime à autoridade competente, que, então, legitimada pelo Estado, poderá dar início ao caminho da repressão ao ilícito praticado.

Sendo assim, atinge-se uma premissa básica: jamais poderia a vítima dos crimes de furto injetar o veneno em um bem que, sabidamente, seria furtado pelo criminoso, sob pena de, assim agindo, responder pelo resultado naturalístico implementado.

Quisesse repelir eventual repetição do crime, poderia esta vítima instalar uma cerca elétrica, aparelhos de alarme, adquirir um cão de guarda, sempre avisando a terceiros a respeito da existência destes instrumentos defensivos.

Desta feita, em assim não agindo, responde esta vítima pelo resultado, que, in casu, se desdobra em dois:

a) A não ocorrência do evento morte, quanto ao furtador, por circunstâncias alheias à vontade da vítima (o furtador não ingeriu a bebida, mas a repassou a terceiros);

b) A morte de uma criança que bebeu este achocolatado, que era destinado ao criminoso.

Diante de tal quadro, as autoridades já se manifestaram no sentido de responsabilizar a vítima, que injetou o veneno, por dois crimes: homicídio qualificado consumado (item B) e tentativa de homicídio (item A).

De fato, diante dos elementos colhidos até então, parece ser essa a solução cabível. Com efeito, o item B se revela, em verdade, como verdadeiro caso de aberractio ictus, isto é, erro na execução, em que se atinge pessoa diversa da pretendida: a vítima, desejando atingir o ladrão, acaba por causar a morte de uma criança.

Neste caso, o agente responde caso tivesse atingido quem, inicialmente, desejava atingir. Como o meio empregado foi o veneno, há a qualificadora presente no artigo 121 do Código Penal.

Mas foi noticiado, também, que o furtador era conhecido dos meios policiais justamente por praticar crimes patrimoniais na vizinhança. Estaria caracterizado, igualmente, o privilégio constante no mesmo artigo 121 (relevante valor social)?

É sabido que existe a possibilidade de se conjugar, no mesmo crime de homicídio, qualificadoras e privilégios, desde que compatíveis entre si: é possível matar o estuprador do bairro (relevante valor social), por envenenamento (qualificadora), muito embora não seja possível matar alguém por meio da eutanásia (relevante valor moral) por motivo fútil (qualificadora).

Então, a uma conclusão já se chega: em tese, caso se confirmem os elementos de prova colhidos, pode-se afirmar que é possível a responsabilização pelo crime de homicídio consumado, já que é válida a imputação do resultado ao agente, cabendo a análise da qualificadora e do privilégio às autoridades que irão conduzir o feito, e que terão os elementos para analisar, concretamente, o crime em tese praticado.

Quanto ao segundo resultado que poderia ser imputado à vítima do crime patrimonial, parece haver um detalhe fundamental: na mesma notícia acima citada, a mãe da criança diz que ingeriu a bebida e, após, entregou a seu filho. Ao depois, acabou por passar mal, com vômitos e demais alterações corporais.

Sendo assim, questiona-se: será que a quantidade de veneno ministrada seria capaz de matar um indivíduo adulto? E mais, tinha a vítima este conhecimento, ou ela acreditava matar o furtador com a quantia que ingeriu?

São dados que podem, perfeitamente, conduzir uma imputação e nortear a aplicação do direito penal.

De qualquer modo, não se pode perder de vista, mais uma vez, que, em razão da forma como procurou reagir aos assaltos praticados, não poderia a vítima ministrar o veneno, que somente não foi ingerido pelo furtador por circunstâncias alheias às da vítima, o que configura, em tese, a tentativa (a modalidade de crime tentado poderia variar de acordo com as provas colhidas).

Finalmente, tornou-se necessário apurar, ainda, em que condições o pai da criança adquiriu os achocolatados que, ao que consta, são produtos de crime. Entretanto, responsabilizar um pai pelo crime de receptação, por ter adquirido achocolatado de origem ilícita, e que foi a causa da morte de seu filho, parece ensejar a aplicação do perdão judicial, caso, mais uma vez, as circunstâncias concretas dos autos apontem para este caminho.

Em suma, quando várias condutas humanas se interligam de forma dissociadas e aparentemente sem nexo, ao intérprete resta analisá-las individualmente para perquirir a real intenção dos agentes, a fim de encontrar uma correta valoração penal.

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1 Achocolatado ingerido por criança que morreu foi envenenado, diz laudo.

2 Limites legais dos ofendículos.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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