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Transporte gratuito de bagagem: um direito do passageiro do transporte aéreo

Rubens Carlos Vieira e Maria Dionne de Araújo Felipe

A proposta da Anac padece de ilegalidade, pois inova em caráter original e primário, extrapolando as balizas legais e suprimindo direitos conferidos pela lei.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Atualizado em 28 de setembro de 2016 10:05

Ao examinar a relação de poder entre companhia aérea-passageiro se vê claramente a desvantagem deste em relação àquela, notadamente pela pouca concorrência no setor, de modo que cabe ao legislador e ao órgão regulador respectivo garantir o equilíbrio desta relação.

Atuando com esse escopo, a Agência Nacional de Aviação Civil - Anac colocou em audiência pública (03/2016) uma série de mudanças nas condições gerais de transporte de passageiros no Brasil. Dentre elas a que gera mais debates pretende desregulamentar a franquia de bagagem despachada, o que permitirá às companhias aéreas cobrarem por qualquer bagagem despachada pelo passageiro, pois se trata de um direito já incorporado ao patrimônio jurídico do passageiro, o qual sempre foi entendido como decorrente do contrato de transporte aéreo.

Doutrinadores de escol seguem essa linha de entendimento. À guisa de exemplo, dissertando sobre a questão, Maria Helena Diniz (Tratado Teórico e Prático dos Contratos. V. 5, pa. 185) afirma que o contrato de transporte aéreo de pessoas abrange a obrigação de transportar a bagagem do passageiro, pois o contrato de transporte de bagagem é acessório do contrato de transporte de pessoa, de maneira que o viajante, ao contratar o transporte, pagando o bilhete de passagem, adquirirá o direito de transportar consigo sua bagagem sem custos adicionais

Não se pretende aqui discutir os argumentos econômicos levantados pela Agência - criar um ambiente de negócios favorável ao surgimento de empresas low cost low fare no país. Nossa análise será eminentemente jurídica, visando a perquirir se a questão pode ser tratada por ato infralegal - Resolução do órgão regulador - ou se depende de lei em sentido formal e material, nos termos do processo legislativo previsto no artigo 59 da Constituição Federal.

Cabe explicar que os atos expedidos pelas agências reguladoras são leis em sentido apenas material, são infralegais e só podem regulamentar matéria disposta em lei em sentido formal e material. Assim, jamais podem contrariar esta última ou ir além dos seus limites. Trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências.

O contrato de transporte aéreo (gênero) está regulado no Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA (lei 7.565/86), no Título IV, Capítulo I, artigo 227 e seguintes, cujas espécies são os contratos de transporte de passageiro, bagagem, carga, encomenda ou mala postal.

No capítulo seguinte II, do CBA, inicia-se a regulamentação do contrato de transporte de passageiro, redigido em duas seções. A primeira trata do bilhete de passagem e a segunda que aborda as regras da nota de bagagem. Embora se trate de dois contratos distintos, não existe autonomia entre estes, pois o contrato de transporte de bagagem (art. 234) decorre do contrato de transporte de pessoas disciplinado no art. 227 e, assim, a existência deste é condição para celebração daquele. O segundo pode existir sem o primeiro, mas a reciproca não é verdadeira. Esta interpretação decorre da leitura do caput do art. 234, quando incluiu o número do bilhete de passagem como condição para expedição da nota de bagagem.

Com efeito, ao celebrar um contrato de transporte de passageiros, mediante remuneração, nascem dois direitos para o consumidor, quais sejam: o de levar objetos pessoais como bagagem de mão e o despachar bagagem, sem pagamento de outro valor além daquele despendido na aquisição do bilhete de passagem. O que remanesce aos atos regulatórios infralegais são, por exemplo, o de trazer parâmetros sobre a quantidade e sobre a natureza da bagagem de mão e despachada.

Porém, jamais poderá um ato infralegal privar o consumidor de uma franquia gratuita de bagagem despachada, por determinação do § 3º do artigo 234 do CBA, o qual diz que além da bagagem registrada, leia-se, despachada, é facultado ao passageiro conduzir objetos de uso pessoal, como bagagem de mão. Assim, infere-se que é faculdade do passageiro que celebra um contrato de transporte de pessoas, transportar bagagem despachada e bagagem de mão, pelo único e exclusivo fato de ter adquirido um bilhete de passagem. Some-se a isso o fato de que só se transporta bagagem vinculada ao transporte de uma pessoa, caso contrário, será transporte de carga, regulado nos artigos 235 e seguintes do CBA.

Nem se diga que atualmente o contrato de transporte de bagagem despachada é gratuito, pois sua oferta constitui uma vantagem indireta para a companhia aérea, um atrativo para angariar mais passageiros, incidindo o parágrafo único do artigo 736 do Código Civil, o qual dispõe que não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.

Assim, a proposta da Anac padece de ilegalidade, pois inova em caráter original e primário, extrapolando as balizas legais e suprimindo direitos conferidos pela lei. Na verdade, a tarefa do ente regulador é o de regulamentar a quantidade de bagagem que pode ser despachada e transportada como bagagem de mão, observando o princípio da razoabilidade. Contudo, não pode eliminar este direito do passageiro, somente por meio de lei formal e possível fazê-lo - revogando ou modificando o CBA.

Não obstante seja relevante a argumentação da agência afirmando que o modelo atual constitui "intervencionismo econômico", a modificação desta política deve ser levada a cabo pelo Congresso Nacional. Desde a edição do CBA já decorreram quase 30 anos. Neste período tivemos uma nova Constituição - que direcionou para um mercado menos intervencionista, a lei que criou a Anac e a Política Nacional de Aviação Civil. Contudo, o legislador jamais alterou significativamente o CBA, levando-nos a crer que há um desejo dos representantes do povo em mantê-lo hígido, ainda que intervencionista. Some-se a isso o fato de que seus dispositivos poderiam ter sido questionados junto ao STF por incompatibilidade com a Constituição da República de 1988, com eficácia vinculante, mediante Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, e não o foi, donde se concluiu, que por mais nobres que sejam os argumentos da Anac, a vontade do legislador externada por meio do CBA é legítima e deve ser obedecida pelas entidades administrativas, das quais a Anac é espécie. Vale registrar que a Constituição da República de 1988 não consagrou um sistema tão amplo de livre mercado como faz crer a Anac. Quando se trata de proteger algum direito ou uma parte vulnerável, a legislação brasileira é intervencionista, utilizando-se, principalmente do dirigismo contratual, incidente nas relações de consumo.

A par da ofensa ao CBA, a redação proposta pela Anac fere o Código de Defesa do Consumidor, pois deixa o consumidor (parte vulnerável) em manifesta desvantagem na relação contratual. É que, como a proposta não diz quando deverá ser celebrado o contrato de transporte de bagagem - concomitante ou posterior - e quais as suas condições, impõe ao consumidor condições de contratação ao puro arbítrio da companhia aérea, sem possibilidade de prévio conhecimento. A situação se torna mais grave na medida em que a metodologia adotada pelas companhias aéreas brasileiras considera que o preço da passagem é inversamente proporcional entre a data da compra e a data da viagem. Torna-se possível um passageiro pagar, por exemplo, R$ 89,00 n'um bilhete para transporte de pessoas e ao chegar ao aeroporto - meses depois, ser informado pela companhia que o transporte de sua bagagem custará R$ 300,00, por exemplo.

Anote-se, em arremate, a necessidade do papel do sistema regulatório brasileiro ser rediscutido pela sociedade, haja vista que as agências não têm conseguido equilibrar a relação passageiro-companhia aérea, como nos referimos na introdução deste texto. Busca-se sempre uma menor intervenção no mercado para garantir melhores ambientes de negócios. Entretanto, só se consegue aferir os benefícios para as companhias em afronto à proteção do consumidor, valor esse tão caro conquistado na Constituição de 1988.

Para ilustrar a forma como tem atuado, fazemos referência à questão da liberdade tarifária, defendida pela Anac como uma grande conquista dos consumidores em razão da queda do preço das tarifas entre os anos de 2006 e 2011. Não obstante, com o advento da atual crise econômica, o preço das passagens voltou a subir, atingindo valores exorbitantes, fato que nos faz pensar que a responsável pela queda não era a liberdade tarifária, mas as condições econômicas do país. Vale ressaltar que a própria ANAC não sabe informar eventual custo benefício da medida.

Portanto, nos moldes apresentados, a proposta da Anac no que concerne à cobrança por qualquer volume de bagagem transportada é ilegal, por ofensa ao Código Brasileiro de Aeronáutica e ao Código de Defesa do Consumidor, que sofrerá evidente retrocesso sem que seja feita a devida fiscalização.

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*Rubens Carlos Vieira é mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e procurador da Fazenda Nacional, foi diretor de Infraestrutura Aeroportuária da Agência Nacional de Aviação Civil - Anac.

*Maria Dionne de Araújo Felipe é procuradora da Fazenda Nacional e conselheira da OAB/DF.

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