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A reforma do ensino médio no Brasil

Um país no qual o rabo balança a cabeça do cachorro

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Atualizado em 20 de outubro de 2016 09:45

Nova celeuma se estabeleceu recentemente entre nós desde que governo central editou uma medida provisória para o fim de estabelecer um padrão para o ensino médio em nossa pátria ("Pátria Educadora", diziam alguns recentemente. Só chorando mesmo!). Como sempre, há pessoas contra, a favor e outros muito pelo contrário. Só no Brasil cabe medida provisória para resolver um problema definitivo.

Um dos marcos da reforma está no favorecimento do aluno em relação às disciplinas para as quais ele teria mais aptidão, o que lhe permitiria dedicar pouca ou nenhuma atenção às demais, exceto por um conjunto esquelético de algumas consideradas temporariamente obrigatórias. Entre as dispensadas estão a educação artística e a educação física. Um chute na canela da cultura e outro na do corpo. E, sintomático, neste último caso que a educação física vai embora logo depois do País haver feito um papel medíocre nas últimas Olimpíadas e Paralimpíadas, realizadas há pouco justamente dentro do nosso quintal. "Mens sana in corpore sano" é ensinamento desconhecido dos nossos educadores.

A ideia de mexer no ensino médio sem ao mesmo tempo atentar para o fundamental (os dois necessariamente deveriam estar no mesmo saco) me faz lembrar o técnico de futebol que prepara um ataque eficiente, mas esquece-se completamente da defesa, ficando o time todo desequilibrado. E tome gol, até mais do que 7 x 1. Isto porque todos nós sabemos que o ensino fundamental público entre nós é um piores do mundo e nós estamos na rabeira do ranking mundial de qualidade educacional. Mesmo quando há escolas, diversos fatores aumentam ainda mais a sua antiga proverbial ineficiência. Trata-se de greves, ocupações de origem interna e externa e fechamentos determinados por traficantes. Tais situações se repetem tanto que nem mais prestamos atenção a elas quando na TV um repórter insiste em delas fazer notícia. Sofrendo dessa forma, os alunos ficam cada vez mais distantes de um patamar mínimo de conhecimento. As comunidades carentes são as que sofrem mais, evidentemente, tirando-se delas a única forma de vencerem os desníveis sociais tão flagrantes e tão díspares no Brasil. Este fator não é apanágio nosso. Mesmo em países adiantados como os "States", o aluno da escola pública dos bairros mais desfavorecidos apresenta um rendimento sofrível, o que o destina desde logo para um futuro de caixa de supermercado ou de jovem que se alista nas forças armadas por falta de qualquer outra opção. O jovem médio americano não é capaz de escrever uma carta de próprio punho pedindo emprego. Ele somente se salva pelo recurso aos formulários à disposição nos sites das empresas.

Há vários pontos a serem destravados para que possamos ter uma educação minimamente qualificada: planejamento de longo prazo que abranja a pré-escola, o ensino fundamental e o médio; a valorização da carreira de magistério; o oferecimento de creches de tempo integral a 100% das crianças cujos pais precisam trabalhar o dia inteiro e não têm recursos para opções privadas; o oferecimento de escolas públicas localizadas perto de 100% das crianças e adolescentes que não podem recorrer à rede privada; segurança escolar institucional; segurança alimentar e de saúde básica; e por aí vai.

Acho que o Prêmio Pinóquio, que deveria ser atribuído aos maiores mentirosos do Brasil, deveria ser dado a todos os candidatos a cargos eletivos, sem exceção, pelas potocas mastodônticas destiladas nas referências às áreas acima citadas. Todos eles mentem descaradamente a cada dois anos sobre os temas destacados, quando somos obrigados vê-los e a ouvi-los na TV e no rádio - exceto quando nós colocamos nossos aparelhos automaticamente no "mudo" em um tipo de reflexo defensivo Pavlov. E olhe que eles estão reclamando de barriga cheia quando falam da falta de dinheiro para as suas campanhas, agora que o financiamento empresarial secou. Basta que eles façam a venda da serragem que raspam todos os dias de suas caras-de-pau, quando abrem a boca para pedirem votos.

Planejamento no longo prazo não faz parte do cardápio brasileiro. Todo político que tenha sido eleito, assim que toma posse joga na lata do lixo todos os projetos do anterior, pois ele precisa fazer a sua "marca pessoal", nem que ela seja, como invariavelmente acontece, o fruto da cabeça de um aspone qualquer, ou o resultado de forte e inesperada diarreia mental, frequente entre eles, ao contrário da prática do "brain storm". É claro que o antecessor muitas vezes deixa tantos fatos consumados e irreversíveis que o novo empossado muitas vezes precisará engolir o sapo e a dourar a pílula, pelo uso de muito engov politico. Muitas vezes o eleito simplesmente se apropria do projeto do perdedor e muda a sua roupa ("alô, Bolsa Família!"), passando a dizer que o inventou. Sobre planejamento escolar, a Coréia do Sul neste momento o está preparando para os próximos vinte anos, a exemplo do que já fez antes. Deve ter dado certo porque, de um país arrasado pela guerra que levou o seu nome, hoje ela é uma das principais economias do mundo, dona de tecnologias de ponta.

Falar-se em valorização da carreira do magistério é igualzinho ao prestígio que a diretoria de um clube dá ao técnico que tem em sua conta muitas derrotas seguidas. Quando o presidente do clube fala em favor do técnico e lhe dá um forte abraço diante das câmeras, o cujo já pode desde logo fazer as malas: está na rua. Mas ao contrário desses, que levam gordas gorjetas quando vão embora, os salários dos professores são mais magros do que o inseto bicho-pau e nem sempre os recebem. Por outro lado, como se diz por aí, o fato do desrespeito sistemático dos alunos aos professores é culpa dos pais que não dão educação aos filhos, pois querem transferir essa responsabilidade aos primeiros. Se é assim, os professores do seu lado deveriam fazer cursos de defesa pessoal para lidarem com esse problema. Assim eles se auto valorizariam. O governo até que poderia colaborar com uma parte do custo. Mas seria uma situação muito grave quando, ao se defender, um professor machucasse um aluno. Mesmo na escola pública, o aluno é cliente, pois afinal de contas os seus pais são eleitores.

No tocante à existência suficiente de creches e de escolas públicas (e até mesmo de CEUS - Centros de Educação Unificada, que têm inclusive pós-graduação, conforme propalado por infeliz prefeito, malfadado candidato a reeleição em certa cidade bem conhecida), pelas palavras dos governantes eles já construíram e inauguraram tantas que devem estar sobrando aos montes. Acho que podemos pensar em exportá-las ou abri-las de imediato para os imigrantes e refugiados que tem chegado ao Brasil. Todo mundo sabe delas. Só os pais das crianças sem escola é que não as encontram, mas isto deve ser problema do seu aparelho celular, cujo GPS não deve funcionando bem.

Quanto à segurança alimentar, bem está mais do que provado que as crianças desfrutam de uma dieta rica e adequada, na quantidade suficiente para as suas necessidades. Se houve um probleminha na área, ele foi único e perfeitamente resolvido, com a imediata punição dos culpados. Imagine se alguém neste Brasil seria capaz de mexer com a merenda das crianças, tão sacrossanta? Este fato foi um desvio isolado de alguém que não tem coração, só estômago.

Analisando agora a segurança nas escolas públicas, ela está perto da perfeição, como diria alguém. O que tem acontecido e aparecido nas manchetes são alguns casos isolados e se balas perdidas foram achadas no corpo de crianças isto se deve meramente a um azar estatístico (efeito colateral). E, como se sabe, nas escolas públicas a droga não rola. Se é cigarro de maconha, já vem enrolado.

Existem outros sérios problemas indiretamente ligados à educação, como saneamento básico e medicina preventiva, mas isto daria um tratado o que não a preocupação presente. Como se vê o Brasil está com nada...

Faltou falar da especialização precoce no ensino médio.

Vamos lá. Todas as pessoas são dotadas de certas características comuns e outras especiais. No plano das vocações este teria sido o mote para que a reforma permita ao aluno montar a sua grade curricular de acordo com a realidade de cada um (O Calvin americano e o Chico Bento brasileiro prefeririam estudar nada). O que se falou muito a propósito é que o aluno deve ter o direito de preferir as matérias do seu gosto e, observado um mínimo necessário, dar ênfase àquelas de sua preferência no seu currículo. Contudo, gostar e ter aptidão são coisas muito diferentes e muitos adolescentes darão muitas trombadas (algumas com perda total) dentro desse esquema. Muitas vezes o desgosto com a matéria na verdade é desgosto com um professor prepotente e/ou mal preparado, sem vocação para o ensino. Meus antigos professores de matemática que o digam. Eles eram mestres em tornar a disciplina um verdadeiro purgante amargo.

Não se trata de novidade. Afinal de contas nossos governantes não são tão criativos assim. No tempo em que terminei o ginásio (o que corresponderia ao ensino médio de hoje) não havia disciplinas optativas. O aluno era obrigado a estudar matemática; português (gramática e literatura luso-brasileira); história do Brasil e geral; geografia do Brasil e geral; ciências (envolvendo uma introdução à biologia, química e física); latim (que barbaridade!), língua morta que éramos obrigados a aprender traduzindo o famoso (já não mais) "De Bello Galico" do caro Júlio, como o grande César é atrevidamente referido pelo meu herói Asterix. Acrescentava-se desenho, canto orfeônico e trabalhos manuais (tive aprender a bordar tapetes em ponto cruz!). Ah, sim! Educação Física, que se resumia em peladas jogadas duas vezes por semana no poeirento campinho da escola, no qual não vicejava sequer um pezinho de grama.

Como se verifica, bullying educacional em estado puro e generalizado.

Daí o coitado do aluno terminava o ginásio e devia passar para o grau seguinte, com três únicas escolhas: o curso clássico (destinado às carreiras inerentes às ciências humanas, especialmente o direito) e o cientifico (para as "exatas", ou seja, engenharia, medicina e odontologia, fundamentalmente). Não se assuste o leitor com a pobreza das opções de então. Estávamos no começo da década de 60 do século passado, milênio idem.

Terceira opção, muitas meninas dirigiam-se para o Curso Normal, preparando-se para serem professoras do curso primário. Mundo machista, não? No entanto, vendo aquela sociedade com os olhos de hoje, posso ser levado a pensar que aquelas meninas não eram grandes sofredoras nem marginalizadas. Eram bem remuneradas como professoras, tanto no grupo escolar, como no ginásio, no clássico e no científico, trabalhando quatro horas por dia e sendo respeitadas pela sociedade. O magistério era valorizado sim. Antes de serem mestres nas Arcadas, José Cretella Junior e Antonio Cesarino Junior foram professores de ginásios do Estado de São Paulo. Quem deu aulas no Caetano de Campos na capital paulista em São Paulo ou em escolas equivalentes espalhadas por todo o País sabe o valor e o respeito que lhes eram atribuídos. As moças podiam se aperfeiçoar no seu ramo de ensino e cuidar de sua família com tranquilidade e sempre lhes era possível viajar com a família nas férias, sem intromissão de parentes e de patrões.

Quanto às moças dos dias de hoje (tenho quatro que não consigo ver tanto quanto quero), como ralam! Disputando o mesmo mercado de trabalho com os homens, sem horário para nada, batalhando sábados, domingos ou feriados, sem férias, atreladas ao celular corporativo e preocupadas com as fichas de tempo, somente se tornando mães para lá dos trinta e cinco, senão aos quarenta anos e mães tardias de um único filho. É um peso duplo porque a medicina, como se sabe, ainda não resolveu o problema da falta de gravidez masculina, o que poderia equilibrar os pratos da balança: "um filho eu, o outro seu". Tempos modernos, já encenou nosso saudoso Carlitos.

Voltando ao nosso caso. Naquela época a especialização escolar limitada de que falei acima acontecia somente no segundo grau quando o aluno (em tese) já deveria ter sido capaz de identificar o seu perfil profissional e, portanto, escolher sem erro. Nada a ver, a começar por este escriba, que quase se acidentou vocacionalmente, salvo pelo Anjo das Profissões Certas. Mas muitas vezes esse dorme ou está distante.

Desculpem-me pelo exemplo biográfico, mas ele é clássico, sem trocadilho. Meu pai era advogado, mas não gostava do direito. Desejou ser médico, mas as finanças da família não permitiam essa escolha e optou pelo que lhe era possível fazer: direito no curso noturno da Faculdade de Direito do Recife. Em casa o direito era um tabu. Sempre tentou que todos os filhos fossem médicos. Os dois mais novos chegaram lá. O segundo virou engenheiro vocacionado. Eu, como não gostava de medicina, negociei fazer engenharia. Bobagem: vivia sendo reprovado em matemática, física e química. Esses seriam sintomas para se atentar, já que falamos em engenharia.

Com muito esforço terminei o curso científico ao mesmo tempo em que estava no terceiro ano e matriculado em um cursinho preparatório para engenharia. O cientifico ainda dei conta, mas nas aulas do cursinho que se aprofundaram nas matérias correspondentes, eu logo comecei a boiar mais do que rolha na água. Vendo que a nau ia ao fundo, procurei conselho com um colega do clássico e resolvemos estudar juntos para o vestibular da São Francisco, da qual jamais havia ouvido falar. Passei direto por dois motivos. Primeiro porque naturalmente eu gostava e lia sobre algumas matérias do vestibular de direito (meu pai tinha uma excelente biblioteca e eu devorava tudo o que tinha páginas, fazendo concorrência às traças). Depois porque varávamos madrugadas estudando tudo o que caia no vestibular da São Francisco (inclusive lógica e psicologia, que eu nunca aprendera de forma sistemática, ainda que tivesse lido Os Quatro Gigantes da Alma de Myra y Lopes e visto o filme Freud Além da Alma, entre outras fontes). E por sorte minha naquele ano não foi exigida prova de latim.

Acho que dei um pouco certo porque senão o caro leitor não estaria perdendo o seu tempo lendo esta mini prosopopeia.

Ora, se eu, como tantos outros colegas que estavam se perdendo pelo caminho, apesar de ter um pai muito culto, não tive base para uma escolha adequada do meu futuro durante o ginásio e quase todo o científico, no qual me matriculei completamente às cegas, o que não pode acontecer com milhares de estudantes do ensino médio que desde o início do seu curso já começarão a se tornarem especialistas? Me diga o leitor.

Finalmente, qual o lugar da cultura em todo esse projeto? Zero vezes zero!

Podemos resumir que cultura consiste na compreensão histórica, política, geográfica e literária do mundo (política com P maiúsculo). Sendo assim, o aluno do ensino médio que praticamente não botou a mão em um livro até aquele momento (livro, livro, porque sou saudosista do presente) e que estudará somente o que gosta, jamais alcançará um parâmetro mínimo nesse campo. Somente se ele for fora da curva é que procurará saber quem foram os gigantes da humanidade e não como pegar pókemons de forma mais eficiente.

Pobre sociedade, para quem machado de Assis é um instrumento cortante que o dono usa para derrubar árvores.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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